Resoluções 2010

Chegámos, mais uma vez, ao último dia do ano. O calendário diz-me que é dia 31 de Dezembro, mas este ano não vou passar por aquele nervoso miudinho da folha em branco, pela pressão de decidir quem e o quê entrarão na minha lista de prioridades para 2010. Porque hoje, pela primeira vez em muito, muito tempo, não vou escrever uma lista de resoluções.
A história começou ontem com uma aventura surreal de final feliz. Quando tudo acabou um amigo disse-me com um tom preocupado: “O teu problema é que queres ter sempre tudo sob controlo”.
Eu? Que organizo os cachecóis por cor, que sei quantos tomates como por semana, que nunca chumbei num exame, que me chateio com a minha chefe por deixar tudo para a última hora? Eu? Que faço todos os dias um teste de conhecimento geral, que só janto aos fins-de-semana e que fiz um “plano reforma” com 20 anos? Eu? Uma controlfreak?
Quem me abriu os olhos foi o amigo que tenho de visita cá em casa. Diz-me ele que as listas de resoluções não servem para nada, que o bom é deixar todas as portas, janelas, buracos e rachaduras da vida abertas porque, no fundo, ninguém sabe o que vai acontecer amanhã. Porque ao decidir algo fechas de antemão muitos caminhos e porque, há sempre que recordar, só temos 23 anos.
Então hoje entrei na pasta do meu computador que diz 2009 e abri o documento “resoluções”. Constatei a quantidade de desejos falhados e de metas não atingidas. Pensei em tudo o que alcancei mas que não pude prever em Dezembro daquele ano. Então apaguei o ficheiro e criei um novo: Resoluções 2010.
Escrevi sem hesitar: “A minha resolução para o próximo ano é não ter nenhuma resolução”.
Este é a primeira vez que faço públicas as minhas metas anuais. Espero que dê boa sorte! Um feliz 2010 para todos!

A burra e o telefone

Toca o telefone. Logo o meu telefone que é uma constante pasmaceira. Era, sem surpresas, a Movistar. Queriam convencer-me a mudar de companhia telefónica.
Uma vez tive uma amiga que trabalhou para uma dessas empresas e ela disse-me que eles ganham pela quantidade de gente à que conseguem “largar todo o discurso". Então, desde ai, eu deixo-os sempre falar até o final. Não custa. A técnica é a seguinte: ponho-os em alta voz, continuo com o meu trabalho e quando acabam digo que não estou interessada. Até hoje tinha funcionado de maravilha.
Até hoje.
A senhora falava, falava, falava, falava. Eu ouvia-a ao fundo, quase sem respirar.
No final diz-me: “Então para que morada devo enviar-lhe o telemóvel novo e o contrato?”
- Ah, não, não estou interessada - apresso-me.
- Como não? Se isto só lhe traz vantagens.
- Certo, mas não quero mudar.
Por alguns minutos a senhora continuou a explicar-me porque deveria passar-me à sua companhia. Eu digo-lhe que não, que não quero, que estou satisfeita com a Vodafone e é então que a coisa se exalta.
- Mas você e burra ou quê? Não ouve o que lhe estou a dizer? – pergunta-me a senhora. Assim. De cara podre.
Eu fiquei sem reacção. Ela tinha acabado de chamar-me burra.
Dei uma risadinha cínica e disse-lhe que não admitia que me tratasse assim e que iria desligar o telefone. Então ela põe a cereja em cima do bolo:
- Se desligar nós voltaremos a ligar-lhe. Portanto o melhor que tem a fazer é dar-me agora a sua morada.
Foi automático. Quando dei por mim já tinha a ligaçao terminad e a cara vermelha a ferver de raiva.
Eu queria ter gritado, armado um escandalo, pedido para falar com o seu superior, feito uma reclamação e exigido a despedissem. Mas, naquele momento, a única coisa em que eu pensava era:
"Desde quando é que a técnica agressivo-autoritária triunfa no mundo das vendas?"
Ainda estou incrédula.
Burra. Ela chamou-me burra. Assim. Com todas as letras. B-u-r-r-a.

O "duplo Natal"

Para quem não sabe, aqui vai: os espanhóis têm dois natais. Sim, não me perguntem porquê, mas não lhes bastava um. Antigamente, sempre que começávamos a falar dos "reyes" (que é como quem diz o Natal, parte II, celebrado em Janeiro) eu acabava por soltar um suspiro do tipo:
- Ai, vocês espanhóis têm tanta sorte.
Ao que, invariavelmente, me respondiam:
- Pois é, em Portugal não há Reis, pois não?
Ora aí está uma coisa que me incomoda. É que eu garanto-vos que isto não me passou nem uma, nem duas, nem cinco vezes. Como é que um povo pode estar tão isolado do mundo? Então eu respirava fundo e respondia:
- Não, meus queridos, não há. Mas não é só em Portugal. É no resto do mundo todo.
Seguia-se uma cara de surpresa e uma frase de espírito nacionalista tipo "e viva España!"
Até que outro dia descobri algo que matou definitivamente a minha inveja doS NataiS espanhóis e que enterrou para sempre aquela conversa enfadonha.
- Mas sabes que nós nem sempre recebemos presentes nos reyes? - disse-me uma amiga.
- Ai não?
- Não, se nos portamos mal podemos ganhar carvão.
E foi então que apareceram de catapulta infinitas histórias de amigos, primos de amigos, sogros e cunhados que um dia receberam carvão no dia dos Reis e que choraram tanto, tanto que nem sequer aproveitaram os presente. Mas também houve aquela, aquela uma, pequena e memorável história do amigo do tio do conhecido que ficou tão traumatizado por ter recebido carvão nos Reyes que quando cresceu mandou tapar a lareira lá de casa.
Portanto, quando passearem por Espanha e vislumbrarem casas sem chaminé gritem lá para dentro:
"Quem é que vos mandou ter dois Natais?"
E esta é a história que vou contar para o resto da vida sempre que alguém vier para perto de mim vangloriar-se do seu "duplo Natal".

La loteria de Navidad

O meu primeiro contacto com a dita cuja foi pouco tempo depois de chegar a Espanha.
— Alguém sabe qual é o dia do ano em que se vendem mais jornais? – pergunta o professor.
E respondem os alunos em coro (estrangeiras excluídas):
— No dia 22 de Dezembro.
O dia em que saem os resultados da “loteria da Navidad”. Porque aqui em Espanha é assim. Sabes de cor o teu aniversário, o dos teus pais, a data de um ou dois feriados, mas nunca, nunca te esqueces do dia em que se publicam o resultado da lotaria de Natal.
O frenesim começa a finais de Novembro. E quando digo, frenesim, meus amigos, pensem em filas gigantescas, horas de espera, sangue e violencia. Porque há que comprar a lotaria em cada sítio por onde passamos. A da empresa, a do restaurante onde almoçamos, a do supermercado, do café da esquina e do clube de futebol. Há que comprar um número no Sol e, claro, ficar horas na fila para conseguir a da Doña Manolita. Porque “Y si toca?” ? E se eles ganham e nós não comprámos?”. E então lá vão os espanhóis gastando 20 euros cada vez que vêem um número “bonito” à frente. E, à medida que o Natal se vai aproximando, mais frequente são estas conversas:
- Ai, este ano estiquei-me. Já comprei 7 lotarias – que conste que isso representa 140 euros – e ainda tenho de comprar mais três.
E eu, invariavelmente rio-me. É impossível conter a minha veia de estrangeira.
- Porque te ris Marina? – pergunta um novo no grupo
- É que a Marina “não acredita nessas coisas” – diz alguém em tom de troça
- Como não? – revolta-se a mesa
E eu digo e volto a repetir. Vezes e vezes sem conta.
- Recordo-vos que as chances de ganhar são de 1 em 85.000 – ruídos na mesa – e, sinceramente, esse fenómeno assusta-me.
O diálogo que se segue, também já o tenho decorado:
- Mas imagina se voltas de ferias e nos “tocou”?
- Vou ficar feliz por vocês. Mas se não vos tocar, depois conto-vos tudo o que fiz com os 150 euros que não gastei na loteria de Navidad.
Eles não me percebem e eu não os compreendo. A única coisa que posso garantir é que há vendedores de lotaria que pedem, neste altura do ano, escolta policial já que são cada vez mais frequentes os assaltos com violência às casas lotéricas. Há também aqueles que ficam mais de cinco horas na fila de uma portinha no centro de Madrid, porque ali “já tocou em vários anos”. “Mas vocês não percebem que o sorteio é totalmente aleatório?”. Não, eles não percebem. “Não acreditas em sorte Marina?”, “Não, acredito em trabalho árduo”, mas isso deve ser um trauma de infância.
Feliz Natal a todos e, para os que jogaram, boa sorte. Falamos quando voltar de ferias!

* O jogo funciona mais ou menos assim. No verão põe-se à venda 185 series de 85.000 números. Cada serie é vendida por décimos (20 euros cada um) o que significa que em Espanha estão a venda anualmente 157.250.000 bilhetes de lotaria de Natal. E, sim, vendem-se praticamente todos. A razão? Estão em jogo 3.000.000 de euros (300.000 por cada décimo).

A plena integraçao linguística

Hoje estava a conversar com uma amiga quando ela me diz:
-Tens mesmo de ver “Trúêblut”, aposto que vais gostar.
Então eu parei. Olhei para ela fixamente e pensei: “Va, concentra-te, tu consegues, esforça-te um bocadinho mais”. Fiz um repasso mental a todos os nomes possíveis e, cinco segundos depois, gritei de alegria
- Ah, a dos vampiros?
Ela sorriu e continuo a falar. Eu abstrai-me. Era a primeira vez que tinha conseguido acertar uma tradução inglês-espanhol. Este era um grande momento
Então cheguei a casa, liguei o computador e, com um sorriso vitoriosa, vi o primeiro episódio de True Blood. Não gostei, mas dei play ao segundo.
Agora estou, feita pateta, a ensaiar a primeira frase que vou dizer amanhã quando chegue ao trabalho:
- Ana, ontem vi dois episódios de Trúêblut
Não é todos os dias que uma serie da-nos o passaporte de entrada para a plena integração linguística.

O verdadeiro espirito de Natal

Hoje de manhã convidei-me a mim mesma para ir às compras. E lá fomos nós, eu e eu, para o centro de Madrid à procura de um presente de Natal. As lojas estavam lotadas e o ar condicionado no máximo. Então toca a tirar o gorro, o casaco, o cachecol e a camisola. Prova uma roupa, outra, esta não fica bem, aquela faz-me gorda e, de repente: “Onde está o meu casaco?” Procuro por aqui, por ali, por todos os sítios que estive e nada. “ Não há problema”, pensei, “os senhores da loja devem tê-lo arrumado”.
Estava eu então a dirigir-me à caixa para perguntar pelo digo abrigo quando reparo que há uma rapariga na loja a usar um casaco igual ao que eu tinha perdido.
Primeiro surpreendi-me, Que coincidência, disse para mim mesma, é um casaco tão velhinho e esta rapariga tem um igual. Mas depois parei.
Espera ai.
Comprei este casaco há quatro anos. Em Portugal. Qual seria a probabilidade de uma pessoa, em Madrid, ter o mesmo casaco que eu no exacto momento em que o meu desapareceu?
- Olhe, desculpe, esta pergunta pode parecer um pouco absurda, mas esse casaco que está a usar é seu?
- Claro que é meu, que raio de pergunta – diz a loirinha impertinente.
- É que eu acabei de perder um casaco igual a esse.
A rapariga muda de cor.
- Está a insinuar que eu roubei o seu casaco?
- Mmmm… sim e gostaria que mo devolvesse.
A conversa tinha subido de tom e os seguranças da loja aproximaram-se:
- Algum problema?
- Esta senhora roubou o meu casaco. Eu deixei-o numa prateleira, ela tirou-o, vesti-o e agora diz que é seu.
- A senhora pode provar o que está a dizer? – pergunta-me o segurança.
- Não, mas pode ver nas câmaras de vigilância
- Não temos câmaras de vigilância.
Isto não me podia estar a acontecer. Roubaram-me o meu próprio casaco, na minha cara, eu identifiquei o ladrão e agora não o posso recuperar? Queria chamar a polícia, mas “não vai servir de nada porque é a palavra de uma contra a outra”. Queria bater-lhe, puxar-lhe os cabelos loiros oxigenados, pisa-la, cuspir-lhe na cara.
- Senhor segurança, convenhamos, não é preciso perceber muito de moda para ver que esse casaco fica enorme a esta mulher. O casaco não é dela! Não vê que é o meu número?
Não, ele não via. E era melhor baixar o tom ou ele teria de me convidar a sair do estabelecimento.
Então fiz tudo de maneira instintiva: virei as costas, respirei fundo, escolhi um casaco novo, paguei, vesti-o e voltei a passar pelo meu casaco velhinho personificado de brasileira de cabelo oleoso:
- Olha, oh ladra, comprei um casaco novo – gritei-lhe da outra ponta da loja – muito mais giro que o que me roubaste. O meu outro casaco estava velhinho mesmo, pode ficar para ti, não faz mal, eu ofereço-to. Considera-o como um acto de caridade.

O Natal faz destas coisas. Ressuscita o lado mais solidário que há em nós.

A geração desencanto

Fomos enganados.
Disseram-nos que seriamos melhores, mais cultos, que estaríamos no topo do mundo, que a educação era a nossa principal virtude. Então sentámo-nos naquelas mesinhas de madeira, enchemos cadernos de canetas coloridas, recitámos poemas em voz alta. Tivemos noventas, cens, dezoitos e vintes. Usámos óculos e dicionários. Fizemos da vida uma espera. Uma espera pelo almejado futuro esplendoroso.
Entrámos nas melhores faculdades, aprendemos sobre Foucault, Heidegger e Nietzsche. Semiótica, teoria do texto e cultura contemporânea. E como se não bastasse, viajámos. Conhecemos o globo com a palma dos nossos pés, experimentámos novas culturas, brindámos em línguas estrangeiras, discutimos política com comunistas e fascistas, com democratas e republicamos. Aprendemos línguas, lemos os clássicos, ouvimos as vanguardas musicais. Absorvemos o mundo.
E quando voltámos, esperámos. Porque se fores bom, as portas nunca se fecharão. Disseram-nos um dia, e nós, ingénuos, acreditámos.
E então aqui estamos nós, esta geração enganada. A geração dos livros, dos cursos e dos mestrados. A geração do estudo, quando, de repente, o que importa já não são os manuais. É a crise, dizem. E nós somos os azarados. Ou talvez sejamos apenas jovens enganados, absorvidos pelo sistema. Demasiados desiludidos para poder lutar. Porque garantiram-nos que seriamos melhor que os nossos pais e o nossos filhos também nos superariam. Mas, de repente, parece que o mundo está a girar ao contrário e nós, bem… Nós já nem sequer sabemos se queremos ter filhos.

O Fernando, parte II

- Ele sabe ler os lábios – tranquilizou-me o camera – basta que lhe fales sempre de frente e que separes bem as palavras.
Parecia fácil.
Depois de algumas tentativas falhadas e outras que foram salvas pela linguagem universal, concluímos: “É que os estrangeiros devem vocalizar as palavras de maneira diferente”.
Mas eu insistia, esforçava-me, vo-ca-li-za-va o melhor que podia e no final recebia sempre o mesmo sorriso com os indicadores a girar em espiral: “repete”. E eu, frustrada, repetia uma e outra vez, cada vez mais intensamente. O Sérgio, vendo o ridículo da situação, salvou-me enquanto me piscava o olho com um ar paternal:
- Marina, ele não ouve, não vale a pena gritares.
Corei pela segunda vez na mesma tarde.
A curiosa dupla de jornalistas trabalhava para um programa de linguagem gestual. A ideia era que os actores da nossa serie dissessem uma frase utilizando a “lengua de signos”. O Fernando era o professor. Ele explicava, pacientemente, cada gesto e a expressão fácil que este acarretava. Era preciso “dizer” tudo seguido, “como se fosse uma frase”, explicava o santo professor que nem sequer se importou que gozássemos com a palavra “actor” por parecer-se a um passo da “Macarena”. No final do vídeo, os actores deveriam ler em voz alta a frase que tinham acabado de “gesticular”.
Quando o primeiro actor acabou a sua leitura, pareceu-me que a voz off tinha ficado perfeita e resolvi perguntar:
- O que achas Fernando? Serve?
Então ele olhou para mim com uma enorme cara de burla e disse com a sua voz de soluços:
- Não sei Marina, é que não consegui ouvir.
E eu corei. Outra vez.

O Fernando

Tínhamos combinado no platô às quatro da tarde, mas a gravação estava atrasada. Como sempre, atrasada. Então eu fui ao bloco de notas buscar o número de telefone que a rapariga de produção tinha me passado durante a manhã:
- O Fernando, o jornalista, vai com o Sérgio, o camera. Tens onde apontar o número do Sérgio?
Eu tinha. Apontei o seu telefone num carderninho e não duvidei. Na hora do aperto, toca a marcar o número, mas o Sérgio, claro está, estava a guiar e todos sabem que falar ao telemóvel e conduzir são menos 2 pontos no “carnet”.
Então eles chegaram, antes do tempo, mas chegaram. O Fernando e o Sérgio.
- Marina, encantada – apresentei-me. E lá comecei a largar o meu speech. Que “sabem como é uma rodagem, tudo muito imprevisível”, que “as sequências com muita gente são complicadas”, que, “desculpem”, mas vão ter de “esperar um pouquinho”. Mas “já agora querem visitar o platô?”, “é por aqui, eu faço-vos um tour”. E eles acenavam com a cabeça e seguiam-me. Então “aqui vive a família mais rica” e “esta é a cozinha dos mais pobres” e “aqui são as barricas artesanais” e “aqui onde o vinho fica a fermentar”, digo eu no meu sotaque de espanhol estrangeiro.
E então olho para o relógio e respiro fundo. Tinham passado uns 15 minutos, mas não poderia mantê-lo entretidos a tarde toda. “Acho que ainda vão ter de esperar uma meia hora”, minto. E, pela primeira vez, olho-os nos olhos. Constato que o Fernando tem um ar assustado:
- Até que horas vocês podem esperar? - pergunto-lhe, prevendo o pior.
Ele abre um sorriso e dá-me um beijo:
- Olá, sou o Fernando, sou surdo – diz-me com aqueles sons quase imperceptíveis de quem não ouve a sua voz.
Ele ainda estava a apontar para o ouvido quando eu caí em mim. Para ele tínhamos ficado na parte das apresentações.

Proprio quella, del Piemonte

Eu sou assim, esquecida. Memória de peixe, come queijo, cabeça de velha. Sou como o armário lá de casa: entra um novo sai o antigo. Sou pessoa do presente aterrorizada pelo passado.
Mas ontem houve uma ideia que me preocupou especialmente e que me deixou toda a noite a dar voltas entre os meus dois edredons nórdicos: “E se um dia me esqueço dela?”, perguntava à minha cabeça oca.
Da cidade dos gelados de iogurte que acompanhavam as tarde de frio, das focaccias compradas na portinha da Via Pó. Daquelas arcadas que guardam tantos segredos. Do Xó e do sangre de Judas. De Bardonecchia e da Notte Bianca. Do Nano e o seu amigo Strano. Do LD e da Strada del Fortino. Do Sponda. Seria impossível esquecer o Sponda.
A semana passada apercebi-me que já nao me lembrava do andar em que vivia. Do numero da minha porta, nem do meu telemóvel. Essas memorias já perdi. Já se foram para a caridade junto com a roupa usada.
Mas e se o tempo passa e eu esqueço-me também dos Murazzí e da Piaza Vittorio Emanuelle? Do monte Capuccino e do tram 16. Da Porta Nuova, da Porta Susa e do eterno "ritardo dei treni". Da Fontana de Trevi e daquele chinês ao lado do cinema. E se daqui a uns meses já não me lembro da Guianduia, da Mole e de Soperga? Logo agora que já clicaram no “delete” em todas as músicas de apoio ao Toro.
Então eu escrevo. Compulsivamente, escrevo. O nome da Piazza Castelo e da Piazza San Carlo. Da Rondò della Forca com gli extracomunitari. Do Valter, (recuperei o seu nome do fundo do caixote, um autentico bem ao ambiente) e do Manuale de Amore. Tento convencer-me que os espaços físicos são secundários e o que importa mesmo são os momentos, aquelas histórias contadas, recontadas e finalmente calcadas nesta cabeça de peixe morto. Mas quanto mais anoto, mais me aterrorizo. Profundamente e dramaticamente, aterrorizo-me.
Porque subjacente a todas esta palavras, paira a inevitável pergunta:
"E se um dia acordar e não me lembrar sequer do nome da minha Never Land?"
Torino, proprio quella, del Piemonte.

A menina namoradeira

Comecei a namorar aos 14 anos. Ele era o meu melhor amigo. Estivemos juntos uns 6 meses. Sentávamos um ao lado do outro no cinema e comíamos Mcdonalds. Namoro moderno, pensava. Um dia ele deixou-me. Assim, sem mais nem menos. Rapidamente fiz um novo melhor amigo. Este era diferente, mais normal, pode-se dizer. Então com ele planeei uma vida lado-a-lado, sonhei-nos a contar aos nossos filhos a nossa longa história de amor. E então chegou o dia em que ele me disse: “Marina, temos de conversar”. E eu chorei. Chorei muito, como se a vida não tivesse mais sentido. A minha mãe, abismada, dizia-me “filha, és muito nova, a vida continua” e eu nesse momento estive a ponto de estrangula-la, como é que ela não via que ele era o amor da minha vida? Seis meses depois (e vários litros de lágrimas derramados) tive um novo namorodo. (Quem diria, ahm?) Ah, mas esse nem conta. Então veio o outro, logo a seguir, quase emendado. Namoro especial esse, prefiro não comentar. Então o trauma do namoro anterior levou-me a tomar uma decisão radical: queria estar solteira durante um ano. Uma semana depois do prazo superado, la me meti eu em mais uma. Namoro longo. Namoro estável. Sem grandes sobressaltos (nem grandes emoções). Um dia ele arranjou outra. Terminou comigo por telefone e, pela primeira vez, senti que me doeu o coração, aquela dor profunda, uma pontada demasiado forte para aguentar. E não teria suportado se não tivesse encontrado o meu seguinte namorado, e que lufada de ar fresco. Secou-me as lágrimas e pôs-me a sorrir. Viajámos o mundo e comemos batatas fritas, até que um dia, puf. “Foi melhor assim”, dizemos até hoje, mas no fundo ninguém o sabe ao certo.
Tudo isto para concluir que há oito meses que não tenho namorado. O que é praticamente um período de namoro solitário, mas tem sido difícil. Não sei se é feliz ou infelizmente mas não posso acabar comigo, nem vice-versa. Não me levem a mal, acho mesmo que sou um bom partido, mas só queria alguém que me oferecesse gomas quando estou triste. E, entretanto, a vida segue, e hoje vou ao cinema com o meu novo namorado, que é como quem diz, comigo mesma.

O mundo em que vivemos, parte II

Estávamos sentadas num daqueles compartimentos de quatro pessoas do comboio. Elas, espanholas que não falavam inglês, eu, dez anos de british council e em busca de companhia para as 5 horas de viagem. Então surgiu a amizade e com ela a conversa sobre a vida madrileña e a vontade de comprar umas galochas, A eterna crítica à qualidade do café inglês e a constatação de como é bom viajar. E a cumplicidade foi aumentando, até que uma das raparigas comenta:
- Ah, e quando voltar de Cardiff vou a Paris – diz a loira dos brincos de pérola.
- A serio? Vais adorar! Sabes que eu sempre que estou em Paris tenho a sensação que em todas as pontes há um rapaz a pedir a namorada em casamento – confesso, sem entender muito bem porque lhe contei aquilo.
- É uma cidade muito romântica – sintetiza a morena com um blush demasiado vermelho para o seu tom de pele.
- Não me digas isso – preocupa-se a loira de madeixas recém feitas – O meu namorado sempre me disse que um dia me pediria em casamento em Paris... O problema é que outro dia ligou-me a dizer que já tinha comprado bilhete. Meu Deus, sou muito nova para casar.
Eu ri-me e a amiga franziu as sobrancelhas. A situação foi salva pelo quarto elemento feminino do nosso compartimento do comboio. A senhora idosa junta-se à conversa e tenta resolver a situação:
- Não te preocupes filha… Estando as coisas como estão aposto que lhe confiscariam o anel de diamantes no Raio X do aeroporto.
O casamento é uma arma potencialmente letal, conclui. Este é o mundo em que vivemos.

O mundo em que vivemos...

Eram umas 50 pessoas as que estavam fechadas naquele autocarro. Havia o problema da gripe A, do vizinho que cheirava mal, da senhora que falava alto e do motorista que, sabe-se lá, podia não saber conduzir. Mas no fundo, bem no fundo, o receio era outro. De repente, PUM. O estrondo foi tão alto que o autocarro saltou em coro. À minha direita um grupo de amigas gritava, as que estavam atrás recuperavam-se de susto e a senhora recém-divorciava aproveitava o momento para refugiar-se nos músculos do seu novo namorado. Os mais racionais olhavam à volta, “mas o que foi isto?”, ouvia-se repetidamente. Não demorou nem um minuto mais e, subitamente, ouve-se outra vez: PUM. As amigas abraçaram-se e o grupo da esquerda soltou um vasto rol de asneiras. O motorista, que, seguramente, faz desta rotina um prazer, gritou com voz de troça: “Tranquilos, estava só a fechar a janela”.
Metade do autocarro riu-se do patético da situação, a outra metade preferiu insultar o motorista de sentido de humor duvidoso.
Olhei para trás e uma menina limpava a sua lágrima de nervosismo.
Este é o mundo em que vivemos....

Visita de médico

Vistas bem as coisas, foi só um dia. Mas nesse dia houve tempo de visitar castelos, debater a situação actual do jornalismo, passear pelos parques de folhas vermelhas e fazer bolas de neve na feira de Natal. As horas esticaram-se e comemos bacon com feijões agridoce ao pequeno-almoço e bebemos uma Fosters ao jantar. Um brinde aos velhos tempos.
Deu para dormitar nas cadeiras do teatro vermelho e até para culpar o humor britânico da nossa nula compreensão das piadas com sotaque cerrado. Tive direito a festas Erasmus e a frango recheado com pesto. Comi cabelos que sabiam a batatas fritas e salivei com as fontes de chocolate no meio da praça. Vibrei com o rugby nacional e fui abençoada com o sol daquela manha de Outono. E, já agora, que todos fiquem a saber que só sobrevivi às nove horas de viagem graças às rezas de uma amiga indiana. Dhanyavadh.
Por aquelas terras também havia dragões vermelhos na rua e esquilos a passear nos parques. O museu fechava às cinco e a roda gigante custava quatro pounds. Too expensive. Ela falava de Gales e eu de Espanha. No fim acabei por lhe pegar a minha cadencia portuguesa e ela concluiu uma vez mais que não tinha personalidade linguística. Ainda podia falar-vos daquele amigo que queria pronunciar “eu comi seis pizzas” e acabou por dizer “eu comi seis pichas”, mas isso seria demasiado obsceno para este blog. Se houvesse mais espaço contar-vos-ia do italiano comunista que tem sotaque britânico, do galês que esconde o crânio por trás dos músculos e do americano que mais tem pinta de europeu. Mas não há mais tempo, porque o dia acaba e como ele esta pequena aventura, ou melhor dito, esta exótica visita de médico.

!Cambio!

No meu novo ginásio não há computadores nem máquinas cardiovasculares. A balança é analógica e só há duas funcionárias (as donas do local).
Cambio
As coitadas são tão baixinhas que não conseguem pôr a grade da porta totalmente para cima e, então, eu tenho sempre a impressão que os vizinhos da frente acham que ali dentro há um negócio ilegal de tráfego de mulheres vestidas com roupas justas.
Cambio
Como são pessoas pequenas, não lhes importa que o seu estabelecimento tenha a mesma área que a sala a minha casa e apenas 10 máquinas à disposição das suas sócias. Parece-lhes normal. Acolhedor, dizem as 30 mulheres que todos os meses pagam 40 euros por este serviço especializado.
Cambio
Sim, mulheres, porque outro dia apareceu o namorado de uma delas e as sócias gritaram em uníssono: “Chooo, aqui não entram homens”
Cambio
Só há um que tem permissão para passar da porta meio gradeada. E, na verdade, nem é bem um espécime masculino. É só uma voz forte e autoritária que nos acompanha todos os dias durante meia hora. E que de trinta em trinta segundos grita:
Cambio
E então la estamos nós, feito baratas tontas, a mudar de máquina em máquina de exercício em exercício. Aprendendo o verdadeiro valor de 30 segundos. E ele volta a mandar:
Cambio
Um pouco machista, eu diria. Mas o homem ordena e as mulheres obedecem. Como na sociedade em si, reflexionaria o taxista que apanhei outro dia. Sociologias à parte, a voz impõe e nós cambiamos, e vamos cambiando, como se a vida fosse isso. Como se um cambio fosse assim tão fácil.
Cambio
E então enganamo-nos num exercício. Não conseguimos atinar com a coordenação do movimento e a funcionaria baixinha ri-se e diz que não faz mal, que o importante é que nunca pares.
Cambio
E eu mexo-me descordenadamente e penso que esta sala é algo mais que um ginásio. É um filosofia de vida: Se te mexeres sempre, não tardará em chegar o próximo
Cambio

Deuses do aniversário, parte II

Eu não queria fazer anos e tornei-o público. Esse foi o erro.
Na véspera pus os telemóveis em silêncio e escondi-me debaixo do edredom. Desta vez não havia telefonemas de meia-noite. O despertador tocou à hora de sempre e anunciou um dia que seria tudo menos comum. Uma amiga perdida na porta e um pequeno-almoço de presentes e língua familiar. Toca a trabalhar, que temos de viver de alguma coisa. A amiga ficou em casa e eu e os chocolates fomos para o platô. Abraços, beijinhos e doces na barriga dos amigos. Então comecei a receber os parabéns pelos “vinte e dois anos repetidos”, os beijinhos virtuais “por nenhuma razão em especial” e as mensagens com sotaques esquisitos:
- Mas Marina, quantas línguas falas? – perguntaram os meus companheiros.
E eu ria-me e continuava a gerir o tráfico internacional do meu telemóvel recém-carregado.
“Ah, então é por isso que eu gosto de fazer anos”, conclui.
Tinha-me esquecido que a graça disto tudo não é passar dos “patinhos na lagoa” para a “idade do casamento”, que não é ter uma super festa organizada com meses de antecedência, nem presentes à nossa espera em cima da cama. Fazer anos é neste dia, durante um dia, receber notícias de amigos perdidos em combate, ouvir desejos de um ano feliz, de uma noite espectacular. Escutar, muitas e repetidas vezes, que gostam de nós. E nós passamos o dia a lembra-nos do quando gostamos deles. É arranhar idiomas já esquecidos. É dizer “obrigado” mais vezes do que é humanamente possível.
Mas, como todos vocês sabem, eu tinha me metido com os deuses do aniversário e eles não costumam levar essas coisas a bem. Eles tinham me livrado do inferno astral e eu deveria ter desconfiado disso. Chegou o grande dia e todos aqueles desejos amigáveis não adiantaram para nada, porque esse dia, o meu dia, foi um dia mau. Não, mais que mau, foi muito mau, demasiado mau para ser verdade. Mas cada vez que me gritavam, me davam para trás e me faziam cara feia, eu ria-me. Gargalhava e pensava: “hoje é o meu aniversário e os deuses estão a brincar comigo”.
Cheguei então a casa com um punhado de míticas aventuras de um dia de anos falhado que as fizeram rir. Saímos e comemos tudo com batatas num restaurante da moda. Acabamos a noite numa manhã de música espanhola entoada em tom desafinado num palco qualquer. Cantámos. Gritámos e dançámos até doer-nos os pés e a barriga de tanto rir.
Ao chegar a casa, já na manhã do dia seguinte, sussurram-me antes de dormir: “Parabéns, já tens 23”.
Eu pronunciei um último “obrigado” e pensei para mim mesma: “Prometo não voltar a meter-me com os deuses do aniversário”.

A morte temporária

Tinha um mês para fazer aquelas 15 entrevistas. Havia dedicado uma manhã a distribuí-las metodicamente pelas 4 semanas que restavam até à estreia. Trabalho fácil, tranquilo, conciliável. Até que resolvi apresentar o plano aos chefes. Tinha uma média de 3,75 entrevistas por semana. Parecia-me razoável.
- A ideia é perfeita, Marina, só que o nosso câmara vai-se embora depois de amanhã – diz um deles.
- Acho que vamos ter de cancelar as entrevistas… - acrescenta o outro.
Eu ri-me. Vê-se tão bem que só me conhecem há um mês. Não pensei nem um segundo.
Agenda numa mão, caderno de anotações na outra, planos de rodagem no colo e telefone entre a orelha e o ombro. Sim, estava tudo certo, faríamos 15 entrevistas em dois dias.
As perguntas e os planos preparam-se na noite em claro do dia anterior. A montagem fazia-se entre um descanso e outro, e os actores… esses convencemo-los com um sorrisinho e uma promessa de sucesso.
Já estávamos no dia dois e o entrevistado falava há meia hora. Doía-me o braço de segurar o microfone e a cabeça de tanto pensar. Não podia mexer-me porque senão os meus pés entravam no plano. Não podia falar, nem tossir. Não podia suspirar.
De repente, um enjoo. Lembrei-me que não comia há muitas horas. Enjoo de fome, conclui. Depois uma fraqueza nas pernas. Fiz as contas. Estava há 8 horas sem me sentar. Foi então que os dois juntaram-se e a visão começou a surgir aos quadradinhos. Era ele. O aviso.
Quando abri os olhos dois homens sacudiam-me as pernas e mandavam-me água para a cara. Tinha acontecido outra vez.
Un bajón de tensión – expliquei. Não adiantou. Trouxeram-me açúcar, comida e primeiros socorros.
- O que aconteceu? - perguntaram-me.
- Nada, nada... É que... (como se diria isso neste idioma maldito?) morri temporariamente- arrisquei com a minha malícia poliglota.
O meu entrevistado riu-se.
- Ela desmaiou de repente - aclarou.
- Sim, "he desmayado" (porque é que nunca confio no glorioso portunhol?). É que só agora que eu percebi que é a primeira vez que desmaio em espanhol. - Tentei justificar-me.
- Isso é bom sinal Marina, porque mundo não é das virgens - explicou-me aquele sábio actor.
Eu concordei. Afinal de contas, tinha aprendido uma palavra nova.

Um Samaín à portuguesa

Conheci o Murphy há um ano atrás num baile de Samaín. Apaixonamo-nos e fugimos decididos a passar uma vida a dois longe das discotecas de after-party corunhesas. Já a amizade com o zombi-zorro-coveiro é um pouco mais antiga. Começou com gargalhadas em muros de cimento e discussões sobre mariscos esmagados. Já havia sangue desde o principio.
Mas naquele dia o destino resolveu juntar a estas três almas perdidas para uma noite à caça de bruxas. Ou melhor dito, à caça a fantasmas enterrados do passado.
Começámos com maquilhagens e conversas profundas. Juntamos à festa uma litrosa ou duas e uns quantos amigos descaracterizados. Rimo-nos com dor de barriga e, aos poucos, fomos perdendo a compostura. No final da noite fizemos o balanço. Constava uma cabeça degolada, um chapéu pontiagudo perdido no vento (ou num subtil movimento de cabeça) e garras espalhadas pelo chão encharcado do Bairro das histórias.
E dessas andanças ficou uma amizade. Uma amizade que ressuscitou alguns fantasmas de erros passados e trouxe de volta a certeza de que não se devem enterrar vivos os sentimentos. Eles voltam à vida na ressaca do Samaín.

Queridos senhores deuses do aniversário,

O meu nome é Marina e escrevo-vos porque tenho um pedido muito especial para fazer-vos. Antes de mais, quero assegurar-lhes que sempre me portei bem com vocês. Comprei bolos, fiz discursos de copo na mão, organizei festas, recebi e dei presentes. Portanto, sem mais, aqui vai: Será que este ano posso não fazer anos? A serio, por favor, vá lá?
Sim, já sei, que o que peço não é fácil. Imagino a quantidade de cartas e emails que vocês recebem todos os anos de futuras quarentonas desesperadas, de modelos em risco de reforma antecipada, de desportistas que que só precisam de mais uns anos para ganhar o seu grande prémio. Mas o meu caso é diferente. Eu prometo.
Daqui a uma semana faço 23 anos. (Calafrio). Vocês estão a perceber a magnitude da coisa? V-i-n-t-e-e-t-r-e-s. Já não são os 20 redondinhos, os 21 para poder ir aos pubs ingleses ou os dois patinhos na lagoa. 23 tem cara de maduro, de crescido e de responsável. É a idade que, quando era pequena, eu dizia que ia ter quando nascesse o meu primeiro filho (o que supunha um marido, um casamento, um emprego estável e um salário decente). A idade que marca a ponte para os 30. Toda a gente sabe que a contagem é a seguinte: 23-30, assim, num pulinho.
Não, senhores deuses do aniversário, por favor, não me façam isso. Estou tão contente com os patinhos na lagoa. Logo eu que todos os anos organizo festas, jantares e viagens. Faço listas de presentes e programo a roupa para usar nesse dia. Ponho bateria na máquina fotográfica e deixo o telemóvel a carregar. Eu, que ha 3 anos celebrei-o em Turim, há dois em Salvador da Bahía e o ano passado na grande metrópole corunhesa. Mas eu este ano não quero festa.
Não quero, não sinto e não estou “de cumpleaños”. Não houve inferno astral, nem contagem decrescente. Nao houve jantares para organizar, nem presentes para pedir. Porque este ano, senhores deuses, não está nos meus planos fazer aniversario.

Podem dar-me um ajudinha?

A check list

Quando eu era pequena e batia nos rapazes do recreio, escrevi um poema que marcou a minha infancia. Eu, que ja nessa altura fazia as composições dos meus amigos em troca de rebuçados, resolvi pôr no papel todas as características que queria que tivesse o meu futuro marido. Imprimi o texto em formato “pocket” e colei-o na carteira (aquele mini álbum de fotos que levávamos no bolso e chamávamos de carteira, lembram-se?).
Nessa pequena obra de arte eu dizia que o homem da minha vida tinha de ser alto e musculoso (tendo que conta que nessa altura, no auge dos meus 10 anos, eu era mais alta que a maioria dos rapazes da minha turma, a tarefa era difícil). Tinha de ser inteligente, divertido e comer gomas (sim, era um requisito). Tinha de gostar de mim, ter os dentes direitos (eu usei 10 anos de aparelho, tenho desculpa) e não podía deitar perdigotos enquanto falava. O sucesso do texto foi instantâneo e, em poucas semanas, todas as minhas amigas andavam para lá e para cá com o meu poema escarrapachado nas suas carteirinhas. A moda durou cerca de um ano e, nesse período de tempo, só uma de nós arranjou um namorado que preenchia os requisitos. Não, não fui eu.
À medida que fui crescendo e relembrando essa minha experiência como guru sentimental, fui revoltando-me cada vez mais com essa história. Como é que eu escrevi o poema e quem ficou com o “príncipe encantado” foi a tontinha dos olhos azuis? Como é que eu escolhi as palavras e todas as minhas amigas fizeram delas uma bíblia na sua busca pessoal por um homem-perfeito? Porque é que elas arranjavam namorado e tiravam o papel da carteira e eu continuei com esse poema na minha cabeça durante anos e anos?
Dessa revolta saiu uma resolução. Farta de perder, decidi nunca mais contar a ninguém a minha "check list". Quem me conhece sabe que eu digo sempre por ai que o meu homem perfeito é x, y, e z. Que tem de ter isto, aquilo e aculotro. A conversa garante sempre umas risotas e umas declarações de amor improvisadas, bebemos uma cerveja e esquecemo-nos do assunto. Mas o que ninguém sabe é que essa não é a verdadeira "check list". Sim, ela existe, mas é só minha. Não voltarei a cair no mesmo erro. Já paguei muito caro pelo meu altruísmo quando tinha apenas 10 anos de idade

Normal vs ¿Anormal?

No meu trabalho novo:

- Vejo muita televisão
- Leio todas as revistas de fofoca
- Converso sobre a vida dos famosos
- Trato os actores como se fossem seres que vivem num patamar superior ao dos comuns mortais
- Sou simpática
- Antes de responder a qualquer pergunta repasso, mentalmente, as clausulas dos contratos de cada um dos trabalhadores da empresa
- Tenho como hobby caçar paparazzi
- Sou a mais nova e a pior paga de toda a empresa
- Quando me perguntam de onde sou, respondo que sou de Portugal
- Almoço às três da tarde em restaurantes de executivos
- (Só) Trabalho oito horas por dia
- Uso maquilhagem para as reuniões importantes
- Sinto-me uma pessoa normal.

Fora do trabalho:

- Leio dois jornais por dia (um de cada tendência política)
- Ouço música indie
- Saco, ilegalmente, filmes da net
- Leio uma hora antes de adormecer
- Janto leite quente com bolachas
- Sou anti-maquilhagem
- Faço turismo todos os fins de semana
- Sou a única trabalhadora do meu grupo de amigos
- Vou aos supermercados “discount” (e tenho uma bolsa reciclada para guardar as compras)
- Visto o meu (novo) casaco à motoqueiro com óculos de aviador
- Quando me perguntam de onde sou, respondo que sou galega
- Faço todos os dias um "teste de actualidade"
- Dizem-me que sou “meio” alternativa.

A culpa é da tela

Em espanhol tecido é tela e tela é lienzo. Claro que por causa disso lienzo não poderia ser lenço, então deram-lhe o nome de pañuelo. E como pañuelo já estava ocupado, ao pano chamaram-lhe trapo. Mas então como chamar aos trapos? Pois os espanhóis, e a sua língua diabólica, inventaram-lhe um nome novo: andrajos.

Agora digam-me lá como é que uma pessoa não acaba com um nó mental?
Ah, e não se esqueçam que nó diz-se nudo, o que faz com que o nú, em espanha, não esteja "nudo", mas sim desnudo, que é como quem diz "sem nós".

O Orgulho de ser o último

Outro dia conversava com uns amigos que começaram a queixar-se de Espanha. Que como que era possível que a educação estivesse tão atrasada, que houvesse tantas estradas por construir, que a politica fosse esta vergonha e os cofres do Estado estivessem a negativo.
Eu ri-me e comentei, só pela piada: “Gostava de ver se vocês vivessem em Portugal”. Sem saber, eu tinha iniciado uma luta.
- Sim, tens razão, nos rankings da União Europeia Portugal, Grécia e Espanha estão sempre em último lugar – diz o meu amigo.
- Não, não, não. Como assim? – enervei-me - Espanha não pertence a este grupo!
- Claro que sim. Estamos sempre no fim da fila, ao lado de Portugal – Olha-me este a fazer-se de coitadinho.
- Ah é? Desculpa lá, mas qual é o país que tem mais acidentes de carro? A maior taxa de infectados pelo HIV? Os piores índices de leitura? – pergunto, indignada.
- Está bem – responde o meu amigo – mas agora não vais conseguir bater esta: Qual é o único país da Europa que ainda não conseguiu sair da crise?

Eu ainda disse com cara de desprezo “A Irlanda?”, mas nesse momento houve alguém que resolveu parar a discussão e chamar-nos à razão: “Vocês ainda não perceberam que estão a tentar defender que o vosso país é pior que o do outro? Que discussão tão estúpida”. Feito duas crianças amuadas, demos a mão e saímos da mesa em direcções opostas. Ele não me ouviu, mas eu resmunguei: “não sei se sabes mas o meu país está em crise económica desde os descobrimentos”.

E toda a gente sabe que quem diz a última palavra é quem ganha.

O País das toalhas

Que os portugueses são “burros” e “conduzem mal”, já todos sabíamos. Que os portugueses “falam com muitos “ssssss”” e com a boca cheia, também não é novidade. O mito de que “as mulheres em Portugal têm bigode” já nos passa totalmente ao lado. Foi por isso que apanhei um choque quando cheguei à Galiza com a língua preparada para as respostas aos típicos estereótipos, e dizem-me: “És portuguesa? Traz-nos aí umas toalhas”.
Ahm?
Parece que eu saltei essa parte da história em que “durante a ditadura os espanhóis iam a Portugal comprar toalhas porque o algodão ali era muito mais barato”. Eu tentei revoltar-me, dizer que era mentira, que as toalhas portuguesas são perfeitamente normais, etc. Mas mandaram-me a Valença e eu percebi. Por alguma razão que me sobrepassa, os portugueses são os grandes fornecedores de toalhas a Espanha. Depois de um ano a ouvir a piada das toalhas, um dia resolvi arriscar: “Mas então e por aqui não dizem que as mulheres portuguesas têm bigode? É que para essa eu tenho resposta!”. Então um amigo respondeu-me: “Marina, vou explicar-te, quando pensamos em portuguesas imaginamos mulheres com bigode enroladas em toalhas”. E essa imagem nunca mais me saiu da cabeça.

Equações absurdas

As equações sem sentido, que não são válidas para nenhum valor, denominam-se absurdas.

Madrid é como São Paulo, mas mais bonito.
Madrid é como São Paulo, mas o céu é azul, o ar está limpo e o centro é o “pulmão” da cidade.
Madrid é como São Paulo, mas na hora de ponta não te apalpam no metro.
Madrid é como São Paulo, mas o cinema é mais caro, a comida menos exótica e o não há “bala de goma” no bolso das calças.
A Gran Via é como a Avenida Paulista, só que mais segura, com menos bancos e mais teatros e restaurantes.
Em Madrid, como em São Paulo, cada bairro tem uma personalidade. Só que aqui, os betos chamam-se “pijos”, os alternativos, “indie” e os homossexuais são marcados como “LGBT”.
Em São Paulo há shoppings que abrem 24 horas. Em Madrid os centros comerciais fecham ao domingo (menos o do Príncipe Pio!).
Em São Paulo vendem na rua “cachorro quente”, “pastel” e “churrasquinho de gato”. Aqui vendem pipocas, churros e batatas fritas.
Em São Paulo não há estrangeiros, porque, no fundo, todos somos brasileiros. Em Madrid os brasileiros dizem mal dos espanhóis.
Madrid é como São Paulo, mas mais seguro.
Em Madrid é vida é cara. Em São Paulo, dizem, também.
As livrarias de segunda mão de Madrid, são como as de São Paulo, só que mais desorganizadas, caóticas e internacionais.
Por aqui eles acham-se os melhores de Espanha (quiçá, da Europa), por ali eles não hesitam em dizer que são os melhores do mundo.
Madrid perdeu as Olimpíadas de 2016. E São Paulo, de alguma forma, também.

Nuestros Hermanos

Outro dia estava a dar uma reportagem na televisão sobre Portugal. Eles andavam pela rua a perguntar aos portugueses o que achavam de Espanha, até que há uma rapariga que diz: “eu adoro os nuestros hermanos espanhóis”. A minha amiga espanhola começa a rir-se. Não, corrijo, tem um ataque de risos incontrolável e comenta quase a engasgar-se: “Como assim vuestros hermanos espanhóis?”. Eu, meio envergonhada, explico-lhe que como pertencemos à Península Ibérica e somos “vizinhos”, nós costumamos referir-nos a Espanha como nossos “irmãos”. Então ela pergunta: “Mas esse sentimento não deveria ser mutuo?”.
Eu fiquei a olhar para o vazio, com cara de filho que acabou de descobrir que era adoptado e respondi-lhe, apelando ao sentimento:
- Se calhar nós gostamos mais de vocês que vocês de nós.
- Não é isso – diz ela - É só que nós não costumamos sequer falar de Portugal.
Eu engoli fundo e aceitei a derrota. Chamem-lhe prepotência ou complexo de superioridade, mas parece que os laços de sangue já não tem a importância de antigamente. Sugiro que deserdemos este irmão mal agradecido. (Se Portugal morresse, deixaria herança? Ou só dividas?)

Comia-te com batatas

Tenho uma nova expressão preferida. É que quando um espanhol gosta muito de uma pessoa diz, “Ah, adoro o fulano, comia-o com batatas”. A primeira vez que ouvi alguém fazer este comentário, derreti. Mas à medida que fui escutando mais e mais vezes a expressão, comecei a pensar em como comeria eu as minhas coisas preferidas:

Os jornais, eu devoraria com azeitonas verdes, a literatura, com um waffle de caramelo, as series americanas, com pipocas salpicadas de queijo ralado fininho. Para acompanhar o pôr-do-sol eu escolheria uma tosta mista, e o amanhecer, eu combinaria com churros recheados de morango.
Quando tiver que comer todas as minhas viagens pelo mundo, escolho saboreá-las com um kebab, os passeios de barco combinam mais com camarões e molho rosa e os picnics com sandes de pasta de atum. Com muita maionese.
As noites com amigos, eu cearia com pão com chouriço e arroz doce, mas o erasmus em Torino, eu não comeria: beberia com vinho de garrafão. As cafezadas pedem scones e a faculdade cheira àqueles croissants com chocolate do Chiado que eu nunca cheguei a provar. Cascais lancha-se com gelados do Santini e Lisboa merenda-se com Pasteis de Belém. No Algarve alimentar-me-ia de Dons Rodrigos e no Porto de uma completa, picante e bem recheada francesinha.
Quando tiver que comer a Galiza, como-a com pulpo a feira. A Coruña, prefiro devora-la com as empanadillas do Tahona e Vigo com as Tapas do Barril. Já Madrid, por agora, combina mais com a Telepizza.
Mas quando penso em comer a Espanha (e que vontade tenho de devora-la), não vislumbro outra opção. É que este País Hermano tem mesmo de ser comido com quilos, quilos e mais quilos… de batatas.

Gravando!

Até foi rápido. Foi só preciso trocar o circunflexo do platô e dar-lhe um agudo bem em cima do o. “Um grampo na cabecinha da avó e um chapéu para proteger a nuca do avô”, foi como aprendi os acentos quando andava na escola. Sendo assim, este platô tinha a franja nos olhos e precisava de um grampinho.
Depois foi preciso assimilar que por aqui a “ofi” é a “oficina” que, por sua vez, não arranja carros, mas é o nosso escritório de computadores “Acer” com problemas de ultra sensibilidade. Seguindo neste mundos dos calões das pessoas apressadas, não há tempo para dizer “representante”. Eles ficaram, então, designados como “repres” e cada actor tem um. São chatos e acham-se importantes (os repres, há que esclarecer).
Voltando ao nosso assunto de hoje, o primeiro ensinamento que eu daria a um novo trabalhador desta empresa/mundo seria aprender a sussurrar. Na verdade, perguntaria isso logo na entrevista, assim, de cara podre: “sussurre aí uma frase”, a ver se se percebia bem o que o dito cujo queria dizer. Menos mal que não me pediram tal coisa, que os que me conhecem sabem que tenho graves problemas em falar baixo e articular palavras (essa foi a grande sorte dos meus professores, já que sempre que dizia alguma “cabula” nos testes, recebia de volta uma careta que gritava sem som: “ahm?”). É que por aqui, quando a luz vermelha acende, não podes andar, nem mexer-te, nem espreitar. E tens de falar em mute. O problema é que o raio da luz está sempre em on e eu estou constantemente a receber as famosas caretas-ahm.
Durante esta semana também aprendi que por aqui decoração não é coisa de tias. É trabalho duro de carpinteiros em tempo record. Também há seis motoristas e catorze actores, muitos contractos e, principalmente, muitas clausulas de contractos. Favor sabe-las todas de cor. Por fim, há que salientar que isto não é religião, mas também tem bíblia. Há que lê-la e decora-la bem decoradinho, porque sempre pode chegar um “bastardo” de um jornalista e perguntar-te sobre um detalhe da serie que te esqueceste de estudar. “Vou consultar com a direcção e já lhe volto a ligar” é uma resposta que fica sempre mal. Mas o melhor é que agora quando soltam a típica do “nós os jornalistas estamos sempre com pressa” eu respondo sorridente: “pressa e a nossa especialidade”. É que há anos que sonho em receber esta resposta, e agora, quem sabe, possa fazer alguém feliz.

Dividindo código postal

Fazendo um pequeno flash-back, concluo que nunca tinha vivido num lugar onde não soubesse o nome das ruas mais importantes, o número de monumentos e a data da festa regional. Nunca tinha dividido a cidade com pessoas cujo único trabalho é repetir durante todo o dia, todos os dias do ano, “No flash, please”. Até hoje, o Dali, o Picasso e o Velásquez faziam parte de memórias de aventuras estrangeiras com tardes cansadas e mapas de museu na mão. As coloridas linhas do metro eram estampas de t-shirts e cenários de discussões de famílias perdidas. Agora todos fazem parte do meu código postal e, quando eu vou dormir, eles ganham alarmes em formas de raios lazer. Já começo a perceber a graça de viver “na cidade grande”.

No deserto urbano

Nestes meus dois dias em Madrid descobri que quando dizemos “Hasta luego” respondem-nos com “adios”, que a Xunta não tem xis e está sinalizada com um éme. O supermercado não fecha à hora do almoço e os shoppings abrem um domingo ao mês (um progresso significativo).
Os dois madrilenhos que conheci hoje disseram-me que eu tinha sotaque galego. Eu respondi-lhe: “Es que soy de Galicia”. E eles contra-atacaram: “Cuándo dices que eres gallega, quieres decir que eres portuguesa?”
Agora quando conto que venho de Portugal já ninguém me presenteia com um “me encanta tu país”. A nacionalidade, de repente, perdeu a piada.
Em Madrid os parques chamam-se “pulmões da cidade”. São castanhos e despidos.
As pessoas queixam-se da falta de chuva, mas pelo menos pode-se dormir com a janela aberta: as melgas não resistem à secura.
Madrid é um deserto urbano.
Por aqui as pessoas estão todas queimadas. Um laranja-solário “precioso”.
Hoje fui ao supermercado e gastei 80 euros. Paguei pela renda do meu quarto o mesmo que pagávamos na Galiza pela nossa casa de três assoalhadas, duas casas de banho, cozinha, sala e lavandaria. Voltei para casa e confortei-me no meu vício: é que por aqui as gomas são mais baratas.
Na Galiza havia os autocarros (que raramente compensavam) os táxis (que só conheci com a tarifa nocturna) e os pés. Em Madrid há o metro e o metro ligero (15 linhas no total). Também há os autocarros (que me levam ao centro em “apenas” 20 minutos), os táxis (que desde o aeroporto custam 30 euros) e os Buhós (ainda por testar). Em Vigo os “autobuses” chamam-se Vitrasa, aqui o comboio tem o nome de Cercanias.
Hoje um amigo perguntou-me: “E vais conseguir trabalhar para uma produtora sem ver televisão?”. Eu hesitei um pouco e depois respondi-lhe: “Não deve ser um vício difícil de apanhar”.
Ao pensar em tudo isto lembrei-me de um tema de reportagem para propor. Mas, a partir de agora, quem as vais escrever já não vou ser eu.

Nos últimos quatro anos...

- Vivi em quatro países diferentes;
- Aprendi dois idiomas novos (e esqueci um deles);
- Dei a volta à Europa de comboio e à América do Sul de barco;
- Fui ao meu primeiro casamento;
- Fiz sete mudanças e doze jantares de despedida;
- Perdi duas amigas (os amigos que ganhei são incontáveis);
- Aprendi a gostar de chocolate;
- Tirei uma licenciatura, uma pós graduação e um mestrado;
- Fiz três estágios e tive dois contractos de trabalho;
- Tive dois namorados diferentes;
-Engordei 8 quilos e emagreci 10;
- Fui entrevistada pela BBC;

Agora que estou prestes a embarcar numa nova aventura, lembro-me daqueles saudosistas que dizem que a infância é a melhor altura da vida.

"No somos sino peregrinos que, yendo por caminos distintos, trabajosamente se dirigen al encuentro de los unos con los otros"

Antoine de Saint-Exupéry

La doble fila

Há um fenómeno por aqui que me irrita especialmente. É chamado carinhosamente de “doble fila” e consiste em parar o carro no meio na estrada, pôr os quatro piscas e ir passear. Sim, isso mesmo.
O problema é que hoje à hora do almoço eu não estava no meu melhor momento. Tinha fome, sede e calor. Um artigo enferrujado para escrever à tarde, um telefonema pendente, uma futura discussão com o chefe que já não havia como evitar. Na rádio só contavam desgraças e eu tinha ainda o almoço por fazer e a roupa por lavar. Foi então que o carro que está a minha frente na estrada resolve “armar-se em espanhol” e, sem nenhum aviso prévio, pára o carro, puxa o travão de mão e liga os piscas. Eu, que vinha atrás dele, tenho de travar bruscamente e, segundo o código de honra das estradas espanholas, deveria contornar o seu carro, passar um traço contínuo e entrar em sentido contrário para poder, assim, continuar a minha viagem a casa.
Mas, como já tinha dito, eu estava a ter uma má hora de almoço. Decidi então descontar todo o meu mau humor no tráfego espanhol. Parei o meu carro atrás ao do senhor e, ao invés de contornar o obstáculo, pus a mão na buzina e esperei.
Seguiu-se um “Piiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii” contínuo que fez com que os comerciantes saíssem à porta. O motorista da frente não queria acreditar. Olhou para trás, fez um gesto para que eu ultrapassase o seu carro e eu nem pestanejei: “piipiiiiiiiiipiiiiiiiiiii” foi a minha resposta. O condutor, atónito, resolveu tirar o carro dali e eu, inspirada pela boa acção que tinha acabado de fazer ao trânsito espanhol, resolvi no percurso do trabalho até casa buzinar a todos os carros parados em “doble fila”. Foram exactamente 17 buzinadelas em um trajecto de 5 kilómetros.
Cheguei a casa feliz e realizada. Tinha descoberto uma nova forma de afastar o meu mau humor.

Bem-vindo à minha vida

Eu bem sabia que aquela noite em claro não me faria bem, que naqueles dias inteiros a trabalhar deveria, pelo menos, ter almoçado. Bem me avisaram que não valia de nada gritar, espernear, insultar até à exaustão aquele chefe não presente.
Já me tinham dito que as lágrimas choradas naquela casa de banho pública deixariam as suas marcas, que daquela vez que duvidei deveria ter instantaneamente perguntado para não andar meses a especular em pesadelos recorrentes.
Já sei que me alertaram que não deveria dormir com o telemóvel debaixo da almofada nem apanhar sol ao meio-dia. Cuidar do cabelo, hidratar a pele, pentear-se. Tudo muito bonito da teoria.
Sempre soube que tinha de aprender a deixar de levar o peso do mundo nas costas. Que tinha de me separar mais dos problemas que me rodeavam, que precisava encarar a vida menos seriamente. É a culpa cristã, diziam os meus amigos. Mas eu só concordava parcialmente com eles.
Tinha de ter sido mais flexível, mais boa onda, mais bom feitio, menos exigente com cada um dos objectivos a que me tinha proposto. Mas não fui. Tinha de ter estudado como controlar os sonhos, relaxar a mente, concentrar-me com mais facilidade. Não o fiz.
Foi então que, inevitavelmente, hoje encontrei o meu primeiro cabelo branco. Queria aproveitar para lhe pedir desculpa pela sua nascença prematura e contar-lhe uma coisa que, quem sabe, pode reconforta-lo: quando tinha 15 anos passei por 21. Agora tenho 22 e todas as pessoas me dão 27. Se acreditarmos na sabedoria popular, já estou perto dos 30 o que, dada a quantidade de tinta que tenho no cabelo, deve ser uma época bastante normal para te trazer ao mundo. Portanto, novo cabelo branco, terás que contentar-te com esta humilde recepção:
“Bem-vindo à minha vida, meu caro. Prometo que ainda nos divertiremos muito juntos. Não me deixarei influenciar pela cor da cabeleira.”

Gorgeous

Desde que estou em Vigo já dormi com fogueiras na praia, já tomei o pequeno-almoço na lota, já provei que era possível comer por um euro e até já fui entrevistada pela BBC. Mas a história da minha estadia nesta cidade olívica estaria incompleta se não mencionasse o dia em que o Leonard Cohen pousou nestas paragens.
Era o concerto do verão. Entradas esgotadas ha meses, dispositivos policias a mercê do pai do hallelujah, nos cafés e nas ruas era o assunto estrela. Mas havia um problema para este jornal com síndrome de “segunda-semana-de-agosto-os-políticos-estão-de-férias”: o Leonard Cohen não dá entrevistas. Era uma quinta-feira de manhã e lá chego eu à redacção pronta para mais um dia de namoro com as palavras para compor a minha reportagem de fim-de-semana. “Marina, o Cohen não dá entrevistas, vai entrevista-lo”, disse-me o meu chefe quando entrei pela porta.
E assim começava mais um dia lendário.
As seis horas que passei a porta do seu hotel armada em paparazi são só uns ingredientes mais para a lenda que contarei os meus pobres filhos. A barriga a roncar de fome, o fotógrafo que assustou a estrela, a conversa maliciosa com os seus assistentes são apetrechos auxiliares que devem ser contados em quantidades “dosificadas” para manter o público concentrado. Porque o que interessa realmente contar aos meus leitores sedentos de novidades foi o momento em que, depois de relatar esta longa e auspiciosa aventura ao meu chefe, ele gritou para a redacção: “Ela entrevistou o Cohen”. E eu gritei de volta: “E ele chamou-me gorgeous”. Desde então, todos os dias sou recebida com o mesmo cumprimento:
- Qué tal gorgeous? Cómo va Leo?

Andar? Nao, eu prefiro caminhar.

Se há uma semana atrás alguém se virasse para mim e me dissesse: “Nos últimos dez meses não usaste nenhuma vez o passado do verbo andar” eu rir-me-ia na sua cara, diria que estava louco e até seria capaz que sentir-me um pouco insultada. Sim, está bem, já sei que o meu espanhol não é aquela maravilha… mas o verbo andar? Vá, pelo menos até ai posso garantir que o meu vocabulário chega.
Infelizmente, nestes últimos dias esta história banal teve um inesperado twist.
Como estrangeira consciente das suas debilidades linguísticas (e depois de ter passado por umas vergonhosas humilhações que prefiro não recordar), não demorei muito tempo a perceber que os correctores ortográficos têm de ser bem tratados e mimados porque a nossa vida depende deles. Foi devido a essa premissa que criei o (inteligente) hábito de nunca escrever uma linha de texto sem passa-la antes por um corrector “solo por si acaso”.
Foi então que esta semana se passou uma coisa curiosa. Estava a escrever-lhe um mail quando o meu Amigo e Aliado corrector automático colocou uma minhoquinha vermelha por baixo de uma palavra. Dizia-me que “andaste” não existe. Parei um pouco para pensar. Confirmei na minha gramática mental que o passado do verbo amar era “amaste”, o do verbo escuchar era “escuchaste” e o do nadar era “nadaste” . “Bem, este corrector está louco” reflecti. E só para não ofender a máquina nem subestimar o seu conhecimento fui perguntar ao Santo Google. Dei uma vista de olhos ao primeiro resultado da pesquisa “conjugar el verbo andar” e, por coincidência, (estariam todos os computadores com um nó mental?) não me havia nenhum verbo parecido com “tu andaste”. Insisti um pouco nessa página, mas só apareciam conjugações estranhas que deviam ser “daqueles tempos que nunca se usam”, concluí.
Por fim, e para não ofender o Santo Google, nem o Grande Amigo e Aliado corrector automático, optei por substituir “andaste” por “has andado” fingindo não me lembrar das regras restritas que o professor de espanhol me tinha passado sobre a utilização do tempo composto.
E eis que surge a resposta ao mail. Ele, esse mestre da língua espanhola e melhor amigo da Rae responde-me como que fazendo troça das minhas dúvidas existências: “Si, yo anduve mucho”.
Passou-se tudo num segundo. A minha respiração parou, o dedo deslizou para a tal página do Santo Google e buscou outra vez “aquelas-conjugações-estranhas-que-deviam ser-daqueles-tempos-que-ninguém-usa”: Pretérito Perfeito do Indicativo: yo anduve, tu anduviste…
Pânico. O coração palpitou. “Marina, pensa rápido se em todo o tempo que estás em Espanha alguma vez já tiveste que utilizar o verbo andar no passado”, dizia a minha consciência. “Pensa nas apresentações orais, nas colaborações com a rádio local, nas intervenções das aulas. Por Favor, suplico-te, diz-me que não passaste por essa vergonha”.
Podia ser uma palavra invulgar, um verbo complexo, um tempo verbal esquisito. Mas não. Era o passado do verbo andar. Esse simples e banal verbo andar.
Então tomei uma decisão que mudou o passado da minha história espanhola. Disse para mim mesma: “É que eu até hoje usava sempre o verbo caminhar”.
E esta passou a ser a versão oficial.

Oposição

Uma das primeiras palavras que aprendi quando cheguei a Espanha foi o verbo “opositar”. Isto porque logo no primeiro dia na minha nova casa umas das raparigas que lá vivia contou-me que esse era o seu sonho. Nessa tal primeira vez tive vergonha de lhe dizer que não sabia o que significava a palavra e imaginei que tivesse algo que ver com formar parte de uma força da “oposição”. No segundo dia ela voltou a falar sobre o tema e comentou como era difícil “fazer oposição”. Pensei em todos os autores revolucionários que tinha lido ultimamente e concordei com ela. Mas à medida que o meu espanhol foi melhorando, fui apercebendo-me que esse tal trabalho que ela queria não era tão nobre quanto eu pensava. Então ela explicou-me:
- Opositar é fazer um exame para trabalhar para o governo, sabes? Trabalhas das 9 as 14h, ganhas bem e não te podem despedir. O melhor trabalho de sempre.
Ah, então ela queria ser funcionária publica… Mas em que área?
- Isso é-me indiferente. Não me importo de fazer qualquer coisa.
Fiquei chocada. Como era possível que o sonho da sua vida fosse ser funcionária pública? Sem mais. Não queria ser professora, contabilista, advogada ou notária do estado. Não queria cozinhar para o primeiro-ministro, ser polícia nacional ou cuidar de crianças necessitadas. O seu sonho era apenas pertencer a esse grupo de pessoas que “trabalha pouco, ganha bem e não pode ser despedido”.
O problema deste país é que, como essa minha amiga tinha comentado, é “muito difícil” conseguir esse trabalho. Simplesmente porque o sonho de todo o espanhol é ser funcionário público (alerta margem de erro!). O mais grave é que a sociedade parece ter chegado ao acordo comum de que trabalhar para o Estado, seja fazendo o que for, é o “melhor trabalho do mundo”. Já conheci pessoas que estão há três anos desempregadas estudando para fazer o tal exame, outras que estão a tirar um “curso qualquer” só para na altura de “opositar” receber um salário melhor e ainda houve outro que me tentou consolar: “Se não arranjares emprego como jornalista sempre podes voltar para o teu pais e opositar, com um mestrado ganhas mais!”
Eu tenho uma profunda implicância com os funcionários públicos. Isto porque numa verdadeira economia de mercado, um emprego que tenha mais segurança deveria, em termos teóricos, ser pior remunerado (é o que explica, por exemplo, o fenómeno dos free-lancers). Em Espanha (e em Portugal também) os funcionários públicos são os menos produtivos, os que têm menos horas de trabalho e são melhor remunerados de grande parte da população activa.
A única razão possível que encontro para isto é que como são tantos, ninguém se revolta. E ainda aproveitam para espalhar esse mito do trabalho de sonho para justificar a insignificância da sua existência.

Não se esqueçam de considerar a devida margem de erro, sim?

Venga

A primeira vez que me pus a pensar nestas coisas foi na temporada que vivi no Brasil. Estava a fazer uma entrevista por telefone e chegou aquela hora desconfortável da despedida formal. Eu com o meu português camuflado de sotaque brasileiro digo em jeito de despedida:
- Obrigada pela ajuda, com licença.
Nesse exacto momento estava um amigo a passar e comenta:
- Cortou-se a ligação?
- Não, porquê?
- Desligaste-lhe o telefone na cara…
Demorei algum tempo a perceber que possivelmente o meu entrevistado ficou do outro lado da linha à espera que eu lhe dissesse porque é que lhe estava a pedir licença.
- Era eu a avisar-lhe que ia desligar o telefone – aclarei. O meu amigo olhou para mim com cara de E.T, murmurou algo como “ai estes lusos” e foi-se embora.
Ao chegar a Espanha percebi como os rituais telefónicos reflectem muito a personalidade de cada país.
Em Portugal pedimos licença para desligar o telefone, no Brasil desejamos ao nosso interlocutor um “resto de um bom dia” e em Espanha… pois ai entra outra história.
A primeira vez que o escutei, deu-me um no na cabeça. Tinha chegado há dois dias a Espanha e uma senhora diz-me:
-Venga, tchau, hasta luego…
Fui ver ao dicionário e confirmei a minha suspeita: “Venga”, em português significa “venha”. Mas ela está a chamar-me para ir a algum lado?, perguntei-me. Na dúvida, decidi ficar calada.
Foi então que percebi que, assim como um uma conversa informal os portugueses dizem “vá, adeus”, em espanhol diz-se “venha”. Deve ser porque o português quer sempre que o outro se vá embora e o espanhol está sempre disposto a que venham, conclui. Por via das dúvidas, prefiro o “venha”. E que sejam todos bem-vindos.

Best-seller

Escolhi-o como companhia para uma longa viagem de comboio. Ao princípio estava tensa. Não conseguia parar de pensar na técnica, nas palavras-chave do suspense. Mas como em todos os primeiros encontros, a desconfiança foi-se embora depois dos primeiros sorrisos cúmplices. Acabamos por ficar dois dias, animadamente, a conversar. Ao terceiro apercebi-me que já o considerava da família. Por mais estranho que pareça, não lhe havia escrito nenhuma anotação, marcado as histórias de especial interesse ou tirado os olhos dele para, por uns minutos, dedicar-me a pensar no que me tinha acabado de me contar. Tinham sido horas de conversa fútil e ligeira. Ele contava-me a sua história e eu, amorfa, absorvia-a sem contestar. Só lhe pedia que falasse mais, cada vez mais.
Foi um choque. Estava habituada aos namoros de cabeceira e às minhas infinitas técnicas e manias que tinha desenvolvido para os enrolar, arranjar desculpas que os atrasassem, que os fizessem mais lentos, só para que ficassem mais tempo comigo. Aqui tudo foi radicalmente diferente. O meu único desejo era ouvi-lo, que me contasse, de uma vez por todas, tudo o que sabia e que no final se fosse embora e me deixasse viver a minha ressaca narrativa sozinha.
Não era, definitivamente, o amor da minha vida. Mas pelo menos serviu para me lembrar que os namoros de verão também têm a sua graça.

* Stieg Larsson - Os homens que nao amavam as mulheres

A Piauí é um dos meus pequenos prazeres de fim-de-semana. Aproveito para recomendar a revista e contar-vos que este mês, além das horas e horas de leituras-suspiro, diverti-me especialmente com os cartoons de Reinaldo Figueiredo.
"Não. Eu sou o NADA. O SER disse que vinha. Deve estar chegando."

Alas Solidarias

Tudo começou com uma pergunta inocente: “Marina, gostas de voar?”
O resto é a história de um piloto que “há muito tempo não andava nisto”, um fotógrafo que já tinha voado “num assim parecido” umas “quatro ou cinco vezes este ano” e uma aprendiz de jornalista que ainda era virgem nessas andanças.
O piloto comunicou com a torre de controlo e o fotógrafo aproveitou para ligar à sua mãe, “se acontecer alguma coisa já sabes que te amo”. A jornalista mirim lembrou-se nesse momento que não havia ninguém em Espanha que tivesse o contacto da sua família e anotou a informação no seu Moleskin.
- O mais difícil é a descolagem - disseram. E a estagiaria agarrou-se ao cinto de segurança como se verdadeiramente acreditasse que ele a salvaria.
“’Tas bem?”, perguntou o fotógrafo em tom de rotina. A jornalista bem quis responder, mas o seu microfone não funcionava. No céu só se pode falar por auriculares, concluiu.
Então passaram por Portugal e sobrevoaram as ilhas Cies. “Os turistas sempre adoram esta parte, porque depois de lá estar percebem como as ilhas são diferentes desde cima”. A jornalista não comentou e quis tirar o seu caderninho para anotar algo como: “Urgente: Ir às Cies”, mas nesse momento os seus pés saíram do chão, que é como quem diz, voou dentro de um avião. Era o piloto boa pinta a meter-se com a virgenzinha. “Gostas de emoção?” E ela ria-se, como costuma fazer em momentos de nervosismo. Mas foi o fotógrafo que sentenciou à morte esta diversão aérea dizendo que estava enjoado, que, curiosamente, em espanhol diz-se mareado, mesmo que o mar esteja centenas de metros abaixo dos teus pés.
A aterragem foi silenciosa. O piloto prometeu uma próxima aventura “com mais manobras”, o fotógrafo queixou-se do seu estômago e a jornalista tentou pensar nas perguntas que queria fazer sobre aquela ong que transportava crianças de Gaza para serem operadas em Madrid, mas só conseguia rir-se. Só que desta vez já lhe tinha passado o nervosismo.

A gargalhada do dia

Já que estão sempre a dizer que eu não tenho sentido de humor, achei que seria de bom tom partilhar convosco as minhas duas últimas (pequenas) gargalhadas que, surpreendentemente, estiveram relacionadas com a mesma "noticia":

Há uns dias vi a foto e fiz um barulhinho a rir-me.


Mas hoje encontrei o vídeo e não resisti. 'Cause that's what I love about politics.

Frase do dia

"No es limpio el que más limpia, sino el que menos macha"

Uma eterna carta de amor

As primeiras memórias que tenho tuas são de quando eu ainda era uma anãzinha e conseguia juntar dinheiro suficiente no meu mealheiro para poder, por fim, chegar à fila do bar e pedir cem escudos de ti. Quem diria que naqueles saquinhos começava uma linda historia de amor
Mas crescer é difícil e logo depois veio aquela fase em que “comprar coisas no bar da escola é só para crianças”. Tu ficaste triste, nunca me vou esquecer, mas lembras-te quando descobrimos as lojinhas dos cinemas? Eu saia com os meus pais e conseguia sempre convence-los a trocar as minhas pipocas doces por um pacote cheiinho de ti. Namorávamos todo o filme. Memórias de adolescentes irresponsáveis.
Mas a fase de ir ao cinema com os pais passou rápido e então apareceram os amigos. Houve aquele festa surpresa inesquecível em que eles deram-me um caixote cheio de presentes e, para acomodar as coisinhas na caixa, quem apareceu? Eras tu em forma de milhares de sacos de amoras coloridas. Dias de paraíso. Dai em diante, tu tornaste-te o trunfo perfeito para todo o tipo de ocasiões. E os meus amigos nunca se deixavam de surpreender pela minha felicidade histérica ao ver-te. Acho que, no fundo, invejavam o nosso amor.
E lembras-te quando tive aquele namorado que caiu no erro de criar uma rotina de presentes (tu, em milhares de saquinhos) que quase o levou à falência? Nós gozávamos com ele e ele com a nossa rapidez de esvaziar aqueles sacos de animaizinhos coloridos sem nunca ter dores de barriga. Bons dias esses.
Mas como em todas as relações, meu amor, a nossa também esteve longe de ser perfeita. Houve o dia em que chegou aquela maldita “vaca louca” que nos separou durante um ano inteiro. Quase entrei em depressão, tu sabes bem. Mas também não posso deixar de mencionar aqueles (vergonhosos) seis meses em que eu tive um pequeno deslize. Desculpa estar a trazer isto à baila outra vez, mas quero que a nossa relação se baseie na verdade, meu amor. Sim, eu troquei-te por potes de chocolate de barrar no pão. Pronto, já disse. Mas como todas as crises, as nossas também foram passageiras. Não é preciso grande sabedoria para descobrir que o verdadeiro amor dura para sempre. E o nosso, sem dúvida, pertence a esse grupo.
Agora, nesta minha vida de eu-trabalho-seis-dias-por-semana, és tu a única coisa que me conforta. Saber que quando o texto encrava posso levantar-me da minha cadeira, descer as escadas e ir até à máquina namorar um pouco contigo.
Mas escrevo-te porque agora estamos em crise. Ambos sabemos que para que a nossa relação resulte, tenho de conseguir ganhar-te.
Porque as gomas, para saberem a gomas, têm de ser oferecidas com um sorriso maroto e comidas com ar de criança traquina de dentes cariados.
Quem será o nosso próximo alvo, meu amor?

Descalça pela vida

Assim como quase todas as meninas, eu também cresci a achar que um dia iria encontrar um príncipe com um cavalo branco, que viveríamos num castelo e falaríamos a cantar.
Mas depois uma pessoa vai tropeçando pelo caminho e a vida vai deitando tudo ao ar. Descobrimos dolorosamente que os animais não falam, que a comida imaginária não alimenta, que os homens, ai os homens, nunca são tão perfeitos como gostaríamos. E até há aquele dia memorável em que nos dizem que os cavalos não podem andar na autoestrada.
Mas as lentes cor de rosa dos livros coloridos da infância são muito resistentes e há sempre qualquer coisa que fica, uma réstia de crença absurda e infantil na salvação e no amor eterno que não se dissolve na espuma de todos os dias, que dura no meio dos gritos, do mau humor, das noites mal dormidas, do fim do mês sem dinheiro e do trânsito parado.
Acreditamos porque queremos e também porque não suportamos não acreditar. O tempo passa e mal sabemos que tudo já se tornou impossível, que ao longo dos anos e das desilusões o que ficou foi a parte prática e não a romântica. Que o que nos mantém unidos ao amor é a certeza de que estaremos sempre melhor acompanhados do que sozinhos, descalços pela vida.
Há uns tempos atrás tirei os sapatos e as pedras da calçada fizeram-me feridas nos pés. Agora que os meus dedos começam a ganhar calos eu pergunto-me se isso será bom ou mau.

Esse cheirinho tão gostoso

O objectivo era simples: fazer uma reportagem sobre o “amanhecer” de um porto.
Problemas:
- O porto “amanhece" ainda de noite
- Às 5 da manhã não fui capaz de encontrar umas calças que não arrastassem no chão enquanto caminhava.
- De manhã, o cheiro intenso a peixe enjoa.
- Uma reportagem completa implica que também presencies o “tratamento de resíduos” do porto. Neste caso, poupo-vos dos pormenores descritivos sobre o cheiro.
- Quatro horas depois, ou seja, as 9 da manha, cheguei a redacção e a luz ainda estava apagada.
- O meu companheiro do lado teve o dia todo a queixar-se do meu cheiro. Parece que as minhas calças fizeram, uma vez mais, o favor de absorver o perfume da lota.

Resultado:
- Duas páginas de jornal só pra mim.
- Uma crónica a dizer mal (assim em tom de gozo, vá…) da Presidente do porto.
- Um “está de puta madre el reportaje” vindo da minha chefe.
e…
- A “feliz” ideia de propor uma segunda reportagem sobre o porto, mais propriamente, sobre o centro de tratamento de resíduos. “Genial marina, adorei a ideia”. Prendi a respiração e liguei para os responsáveis. Visita marcada para amanha de manhã.

Pergunta do dia:
“Mas o que se passa contigo? Tens um problema ou no fundo gostaste do cheiro?”

Decisão:
- Amanhã vou de calças curtas (e velhas).
- Esta noite treinarei novas técnicas para prender a respiração.

O "élhdgê"

Há um som na língua espanhola com que vou travar para sempre uma dura batalha. Escreve-se “ll” e se um dia vos disserem que correspondem ao nosso “lh”, fujam, porque essa pessoa está a tentar enganar-vos.
Pois eu explico:
Depois de nove meses de expedição do mundo espanhol concluí que o “élhê”, como eles chamam, é um som que vive a meio caminho entre o “lhe” e o “ge”. Construiu a sua casinha num fonema que eu traduziria como “lhdge”. A pior parte desta batalha (e que me faz pensar que, à partida, já está perdida) é que os meus ilustres professores, que é como quem diz, os espanhóis, ainda não se decidiram sobre qual deve ser a sua correcta pronuncia. Para dizer chaves pronunciam indiferentemente “lhaves”, “jávez” ou “lhdjáves” o que faz com que o meu cérebro dê um nó cada vez que tenho que dizer uma palavra que começa por essa maldita “consoante”.
Mas como o destino gosta de se rir de mim quando está aborrecido colocou como meu companheiro de mesa de trabalho um senhor que se chama, nem mais nem menos, “Llera”. Estive um mês a inventar malabarismos lexicais para que não ter de chama-lo pelo nome. Ontem, quando achei que já o tinha treinado vezes suficientes em casa e que já sabia pronunciar a dita palavra, chamei-o e ele não olhou. “Desculpa, é que não percebi que me tavas a chamar a mim”, disse-me sublinhando o “mim”.
Hoje contaram-me que ele foi de férias e que só voltará daqui a um mês. Parece que tenho várias semanas para continuar treinando. Ou, quem sabe, para encontrar-lhe uma boa alcunha.
Sugestões?

Quando o futebol vira política

Estava hoje num café a ler o jornal e a espreitar jogo Espanha vs. África do Sul, quando percebi que um dos senhores estava contra a equipa nacional. No fim do jogo, a minha curiosidade jornalística não perdoou e perguntei-lhe porque torcia contra a Espanha.
- Não há como estar a favor de um país governado pelo Zapatero - respondeu-me convicto.
Eu ri-me e não consegui conter-me:
- Ai sim? E que tal governam na África do Sul? - arrisquei com o meu sorriso maroto.
- Não sei, mas de certeza que não tão mal como o Zapatero.
No fim, o senhor pagou-me a Coca-Cola e desejou-me boa sorte para o jogo do Brasil.
Vim para casa a pensar no Lula da Silva.

Fugas e o grande titã

Esteve nove meses na minha barriga, no meu computador, no meu moleskin e a viver em todos os meus pensamentos.
Dormiu na minha mesinha de cabeceira, viajou comigo e se multiplicou em cada vez mais folhas com detalhes vermelhos. Foi motivo de zangas, desilusões, lágrimas e gritos histéricos. Passou por varias provas, por muitos olhos e por críticas cruéis. Tirou-me horas de sono, de descanso e de trabalho.
Até que, por fim, chegou o grande dia. Aquele em que o meu filho sairia a do conforto dos pensamentos e das ideias, e se materializaria em mais um ser neste mundo. Penteei-lhe o cabelo, pus-lhe uma roupa bonita e levei-o à derradeira prova.
“Mas, meu filho, prepara-te, porque a vida não é fácil”, disse-lhe antes que o julgamento final começasse. “Eu prometo que te protejo”, sussurrei bem baixinho, enquanto lhe limpava a remela que lhe tinha ficado da anterior noite não dormida.
Começou a prova. Fizeram-lhe festinhas e elogios. Gabaram a educação que eu lhe tinha dado e os seus lindos olhos verdes, implicaram com aquele cabelo que estava fora do sítio e com uma mancha que havia na sua camisola. Mas as pessoas são bonitas pelas suas imperfeições, pensei para me confortar.
Aplaudiram-no e deram por encerrada a sessão. O meu filho olhou para mim com um ar desiludido: “Mas mamã, não me tinhas dito que a vida era difícil?”
A resposta não tardou nem meio segundo. Porque ali estava ele, o titã dos titãs, o grande chefe das pequenas crianças. Pegou no meu filho e virou-o ao contrário, sacudiu-o, despenteou-lhe o cabelo e roubou-lhe um dos sapatos. Chamou-lhe nomes, bateu-lhe e humilhou-o.
E, nesse momento, o mundo deu um passo atrás, retirou as frases elogiosas e vestiu-se de um olhar de compaixão para com o meu filho que, num minuto, tinha passado de popular a deficiente.
Mas o que o grande titã não esperava era que aquela criança tivesse mãe. Peguei no meu filho, acalmei-lhe o choro, e dei dois passos em frente. Porque aqueles nove meses tinham-nos feito muito mais fortes do que o grande mestre poderia imaginar.
Expliquei-lhe como educar era muito mais do que um exercício estético e mostrei-lhe como uma menina de poucos anos também pode ser uma mãe de verdade. Falei-lhe das horas de choro, dos dias de chuva e das noites sem dormir. E contei-lhe tudo o que tinha aprendido nesses momentos. Respondi-lhe no mesmo tom de superioridade titânica e observei-o enquanto anotava as minhas respostas.
No final o meu filho disse-me: “Obrigado mãe” e eu pedi-lhe que nunca se esquecesse desse dia. O dia em que tínhamos lutado, cara a cara, unha a unha, olhar a olhar, com o grande mestre.
“E vencemos mamã?”, perguntou.
“Talvez não, mas demos-lhe uma lição sobre o que é ser uma família de verdade”, respondi.

Jornalismo vs. Calças Brancas

Eu tenho um par de calças das quais gosto especialmente. São velhinhas e um pouco rasgadas nas pontas, justas e com uma boca de sino enorme. Ficam exactamente a um milímetro de roçar no chão. E são brancas, bem branquinhas.
Hoje de manha acordei com aquela sensação de “hoje é dia de calças brancas”. Abri a janela, olhei para o céu e confirmei que São Pedro me apoiava nessa decisão. Juntei ao meu look de verão umas sandálias “rasteirinhas” e lá fui eu trabalhar.
Mal cheguei, diz-me o meu chefe:
- Precisamos que vás ao porto falar com os pescadores sobre a venda de sardinhas.
E a Marina e o seu caderno companheiro rumam ao porto. Ao chegar, apercebo-me que se tinham esquecido de comentar um pequeno detalhe. É que no porto, ao meio dia, já não há sardinhas nem pescadores. O recinto transforma-se numa poça gigante de gelo derretido, misturado com sangue e restos de peixe estragado. E, enquanto buscava uma "alma bondosa" que falasse comigo sobre as venda de sardinhas para o São João, as minhas queridas calças brancas aproveitaram para deliciar-se a “beber” toda aquela agua desperdiçada no chão.
À tarde, ao chegar à redacção, perguntam-me:
- Mas Marina, mudaste de roupa?
Então eu contei-lhes o que hoje tinha aprendido:
- Um jornalista deve sempre ter em casa um bom Tira Manchas, e, já agora, as calças brancas são um mau investimento para este tipo de profissionais.
Eles riram-se. Mas eu não percebi porquê.

"Cuando el dedo señala la luna el imbécil siempre mira al dedo"
Proverbio Chino

Quando eu tinha 3 anos...

... os meus pais encontraram-me escondida dentro de um frigorífico no supermercado.
Desde então, tenho sempre muito frio.

Golondrina

Há gente que tem mania de sapatos, de filmes, de cores e de cheiros. Eu gosto de palavras. À medida que as vou usando, vou ganhando-lhes carinho e dando-lhes roupas, nomes e, às vezes, até morada e telefone. Há algumas a quem ligo para pedir ajuda nos momentos de agonia, outras que já sei que vão sempre ficar bem em qualquer ocasião. Há umas palavras que, dizem, são como as muletas para segurar os textos coxos e há também as que mais se parecem a uma droga que já não conseguimos parar de injectar.
Mas hoje eu quero falar sobre as palavras preferidas. Pegas no “mi”, juntas-lhe o “nho” e rematas com o “ca” e voilá! Aí tens a melhor palavra do vocabulário português.
Mas já há algum tempo me tinha tristemente resignado ao facto de em espanhol “não existir uma palavra tão divertida como ‘minhoca’”. Até que ontem perguntei na redacção:
- “Como se diz andorinha em castelhano”
E os meus ouvidos escutaram os astros a cantarolar:
- Pegas no “go”, juntas-lhe o “lon”, das-lhe uma pitada de “dri” e rematas com “na”.
Finalmente, a vida voltou a fazer sentido.

La siesta

Lembro-me que quando cheguei a Espanha fiquei espantada com o tempo que as pessoas demoravam a almoçar. Entre a salada, o primeiro prato, o segundo, o pão, a sobremesa e a o café (com leite), passavam-se quase duas horas. Como era novata, ainda não tinha à-vontade para escapar-me da mesa a meio do “ritual” e então aproveitava esse tempo para pensar em todas as coisas produtivas que poderia estar a fazer ou que iria fazer quando o eterno almoço acabasse.
Os meses foram passando e eu tornei-me especialista em sair da mesa a meio da refeição, que é como quem diz, uma hora depois do início do almoço. Mas desde que cheguei a Vigo, passa-me uma coisa curiosa:
Por aqui os jornalistas fazem uma pausa de duas horas e meia (as vezes três, vá…) a meio do dia. Quando escreveram no meu contracto que eu teria três horas de almoço, supus que seria tão indicativo quanto as “oito horas” que os jornalistas deveriam trabalhar diariamente. Mas parece que neste caso a “indicação” era verdadeira.
É por isso que, desde há três dias, venho almoçar a casa. O problema é que não sei muito bem como enfrentar-me a essa situação. Vou ao supermercado, cozinho, como, vejo televisão e lavo a louça e sempre que olho para o relógio apercebo-me que ainda só passou metade do meu tempo de almoço. Dedico o resto da minha “pausa” a andar como barata tonta pela casa e a pensar no lead da notícia que vou escrever à tarde.
Não consigo parar de perguntar-me se um dia vou encontrar utilidade para esta “pausa forçada” ou se o melhor mesmo é inscrever-me no ginásio à hora do almoço e desprezar totalmente este último esforço para uma “melhor adaptação e compreensão da cultura espanhola”.

Tudo o que eu tenho a dizer sobre as eleições europeias

Com 7,1% dos votos, o Partido Pirata da Suécia conseguiu eleger um deputado para o Parlamento Europeu. Agora teremos alguém em Bruxelas a "defender o direito dos internautas a partilhar gratuitamente músicas e filmes online".

"Suerte"

Como sempre, tudo se passou numa espiral descontrolada de acontecimentos.
De repente as aulas tinham acabado, as infinitas horas de trabalho culminavam em duzentas páginas encadernadas debaixo de chuva, e a despedida… ah, eu nunca fui muito boa para despedidas.
A vida ensinou-me que não existem adeus definitivos e que é muito fácil subornar os pontos finais para que se transformem em vírgulas. “Suerte”, dizíamos e continuávamos a caminhar, sem olhar para trás, sem tropeções ou soluços.
E veio uma festa e outra festa. Chegou “a última festa” e eu festejei sem aperceber-me. A mala fez-se sozinha ao som do Bob, esse nosso companheiro de angústias, que sabiamente nos diz com a sua harmónica que o vento nos trará as respostas. O vento e esta chuva que insiste em acompanhar-me para onde quer que eu vá.
Na viagem tentei pesar na balança este tempo que já passou, mas um dos pratos não aguentou o peso da responsabilidade e espatifou-se no chão. Enquanto recolhia os cacos desse tempo passado, descobri que já tinha chegado o presente.
E assim, sem mais nem menos, começou uma nova vida.
Eu fui sempre desajeitada para despedidas, mas não faz mal, porque cada adeus se faz acompanhar por um sincero “bienvenida”.

Inferno Astral

Há verdades que nunca contestamos. Se desde criança nos dizem que um mês antes do nosso aniversário os astros se unem para nos enviar energias negativas, nós acreditamos.
Se nos explicam que a culpa de tudo de errado que se passa nesses 30 dias é dos céus, sentimo-nos confortados.
E se nos justificam que quando esse mês nos corre bem é porque fomos fortes o suficiente para combater os astros, nós ficamos orgulhosos das nossas capacidades.
Então perguntamos se o inferno astral pode enganar-se e chegar fora da data prevista.
Dizem-nos que “os astros são capazes de qualquer coisa” e nós sorrimos e lembramo-nos que essa foi a primeira razão que nos levou a acreditar neles.

Voltou.

Hoje encontrei a caixa dos meus óculos e fui à praia sem protector solar.
Li o jornal de pé enterrado da areia e usei as minhas sandálias ortopédicas.
São nove da noite e os meus olhos começam a fechar de sono.
Sinto que a vida está a voltar à normalidade.

O Dia do Orgulho Friki

Gostam de ficção científica, de banda desenhada e não resistem a desenhos animados japoneses. Sabem tudo e mais alguma coisa sobre filmes de série B e o seu sonho era ser um super herói. Chamam-se “frikis” e amanhã estão de parabéns.
Toda a gente sabe que eu sempre tive um fraquinho por esta “espécie humana”, talvez por, à minha maneira, também ter o meu quê friki. Fascinam-me as fofocas e teorias da conspiração sobre realidades que não existem, irrito-me quando se diz que BD é coisa de crianças e divirto-me com os filmes de terror do Fantasporto...
Mas tudo isto porque amanhã celebra-se em Espanha o Dia do Orgulho Friki, com o lema “Se não é este mundo, dominaremos outros”. A data foi escolhida por conjugar duas efemérides importantes: a estreia do primeiro filme da saga Star Wars (1997) e o dia da morte de Douglas Adams (2001), autor do livro À Boleia pela Galáxia.
Mas se estão a achar todo este post uma “frikalhada”, esperem pela informação que se segue:
Estive a ler sobre as comemorações do 25 de Maio e descobri que em Inglaterra o dia é celebrado como o Dia da Toalha, que consiste, basicamente, em sair à rua com uma toalha às costas. O que pode parecer um absurdo, é apenas uma forma que encontraram de homenagear Douglas Adams, que ensinou nos seus livros que ninguém deveria sair a rua sem este objecto porque “é o mais valioso quando se quer sobreviver aos perigos de uma Galáxia desconhecida”. O autor explica que a toalha pode servir como:
- Cobertor ou casaco
- Bandeira
- Reforço psicológico (“é como um amigo”)
- Arma (“um golpe bem dado com uma toalha molhada pode arrasar um inimigo hostil”)
- Vela de um barco
- Esconderijo
E, por fim,
- Para secar-se (“é o uso mais normal que acaba por eclipsar os outros e condenar as toalhas aos armários da casa de banho”, explica Adams).

E vocês? Como vão comemorar esse dia?

Desabafos de uma jornalista frustrada

O limite do jornalismo revela-se no dia em que um entrevistado pergunta-nos:
- Mas isto é grátis, não é? Ou tenho de pagar alguma coisa para que me publique esta informação?

Tuteando

Hoje, enquanto um professor tentava convencer-nos de que a monarquia era o melhor sistema político para Espanha, ele disse uma frase que alterou toda a minha perspectiva de vida em Espanha:
- O Rei tem um estatuto que lhe permite tratar por tu a todas as pessoas do mundo. Com a excepção do Papa, a quem tem de tratar por Vossa Santidade.

A frase lembrou-me do meu “pequeno probleminha idiomático”: é que eu não sei conjugar muito bem os verbos em “usted” e então já há algum tempo decidi que trato toda a gente por tu aqui em Espanha.
A grande diferença e que eu antes dava como desculpa que “ah sou estrangeira e tal” e agora vou passar a dizer: Sou o Rei de Espanha.
Só espero que um dia não tenha de entrevistar o Papa. Porque nesse caso vou ter de lhe dizer que o Papa sou eu!

Deskippelização

Hoje li um artigo que dizia que “a erradicação do kippel” era como a solução milagrosa para salvar o mundo.
O kippel são todos aqueles apontamentos da faculdade que nunca colocámos a reciclar, aquele livro que detestámos e que o mantemos na estante a apanhar pó, aquelas camisola que a nossa tia nos ofereceu há cinco anos e que nunca usámos. São todos aqueles objectos que compramos e terminam esquecido no fundo gaveta.
Pus-me então a pensar nos kippels da minha vida. Aquele email guardado que nunca cheguei a responder, o insulto que abafei e o beijinho que sempre quis dar.
Lembrei-me dos amigos em quem penso tanto, mas com quem nunca falo, naquele texto que quero “um dia escrever” e nos sonhos que nunca cheguei a realizar. Listei tudo isso e somei as horas da minha vida que já desperdicei a pensar no que "tenho de fazer", sem nunca colocar nada em prática. E foi por isso que declarei esta semana como a Semana Oficial de Deskippelização da minha vida.
Alguém alinha?

Técnicas de controlo

Em espanhol as línguas não se sabem, “controlam-se”.
Assim como um namorado possessivo que quer saber onde estávamos quando não lhe atendemos o telefone, assim como o panóptico e as doenças crónicas. Assim como a respiração nas aulas de ioga.
Queremos que o idioma nos explique porque se usa esta preposição e não a outra, porque se chama aos calções “calças curtas” e para os casacos inventaram dez palavras distintas, porque o jota tem som de érre e o duplo éle som de jota… Exigimos respostas, queremos controlar todos os seus movimentos e nuances, mas o raio da língua tem a mania da liberdade e foge-nos pelos dedos, qual menina independente.
Ultimamente têm me dito muito que já só me falta "controlar" um pouquinho mais o espanhol. E sempre que isso se passa, dou comigo a pensar em técnicas de tortura fascista.
Quem sabe funcione…

Eveneme… quê?

Desde que cheguei a Espanha que me lembro muito de um episódio que se passou nas emblemáticas aulas de Teoria do Texto.
A professora falava, como quem comenta o novo corte de cabelo da vizinha, sobre a ligação da escrita e da oralidade e sublinhava a necessidade da “problematização da evenemencialidade da escrita” na sociedade moderna.
Foi então que no fundo suege uma voz que pergunta no idioma internacional dos erasmus:
- Desculpe, mas pode repetir a frase?
A professora, encarnada por um espírito de caridade sem fronteiras responde à erasmus:
- E-ve-ne-men-ci-a-li-da-de da escrita. É normal que não conheças a palavra, é um galicismo que gosto de usar.
A atenção da sala voltou-se para a rapariga que, nesse momento, olhava para os outros alunos em busca que uma reposta que tivesse, pelo menos, una palavra que constasse no seu dicionário de bolso.
A professora, já no seu estado mais puro de solidariedade para com as minorias internacionais, esclarece, com um tom de voz maternal:
- Evenemencialidade discursiva significa a acontecimentalidade de um discurso.
É então que a rapariga atira a caneta para cima de mesa e pergunta numa última tentativa desesperada de sobrevivência:
- Aconteci… quê?
A turma riu-se e prometeu passar-lhe os apontamentos no final do ano. A erasmus nunca mais voltou a assistir às aulas.

Gostava que o mundo real fosse uma eterna aula de Teoria do Texto e que eu pudesse um dia atirar a caneta ao chão e dizer aos assessores de imprensa que escrevem os comunicados políticos (em galego): “Eveneme… quê?”

O sistema mediatico

Ele chegou apenas com uma folha de papel. Não ligou o computador, nem perguntou o nosso nome. Danem-se essas modernices da interactividade! Não olhou ninguém nos olhos, não fez sorriso de boas vindas.
Apenas sentou-se e começou a falar.
Durante quatro horas discorreu sobre o sistema uninominal, a pluralidade, a ideologia e o conceito. E eu escrevi páginas e páginas de saber copiado em letras rápidas e arrastadas, enquanto o resto da turma fazia desenhos no caderno e enviava-me bilhetes em busca de conversas paralelas.
No final, deu-nos oito minutos para fazer-se perguntas. Fez-se uma e o tempo acabou.
Sentada na primeira fila, larguei a caneta e alonguei os dedos cansados. Ele fechou a porta e não olhou para trás.
E enquanto guardava os meus apontamentos no dossier dividido por cores, deixei escapar um pequeno suspiro. Porque durante quatro horas voltei ao passado. Àquele tempo em que a vida eram viagens de comboio de dossier na mão. Um dossier que cada dia pesava algumas folhas a mais.

As dez razões pelas quais ultimamente tenho pensado muito no Nietzsche...

«O que não te mata torna-te mais forte.»

«Ser independente é coisa de uma pequena minoria, é o privilégio dos fortes.»

«Não há razão para procurar o sofrimento, mas se este chega e trata de meter-se em tua vida, não temas; olha-o na cara e com a testa bem levantada.»

«Sem música a vida seria um erro.»

«O mundo real é muito menor que o mundo da imaginação.»

«Quando se tem muitas coisas para meter nele, o dia tem cem bolsos.»

«O homem sofre tão terrivelmente no mundo que se viu obrigado a inventar o riso.»

«Apenas aquele que constrói o futuro tem direito a julgar o passado.»

«O que me preocupa não e que me tenhas mentido, mas que, de agora em diante, já não possa acreditar em ti.»

«No amor sempre há algo de loucura, mas na loucura sempre há algo de razão.»

17 anos depois.

Esta é a história de uma família que um dia cantou ao telefone: “É uma casa portuguesa com certeza” e para Portugal se mudou. De uma mãe que disse, “na minha casa não entra esse sotaque” e de um pai que andou num exercito de paredes cor-de-rosa.
Por ali cresceram dois irmãos que gravavam telejornais para não se aborrecer nas viagens, que eram repreendidos pelas professoras por dizer “à” e não “â” e que nunca comeram sopa à refeição.
Naquela família houve um cão chamado Moby Dick, um hamster Godofredo e umas tartarugas que são do tempo em que o Tom Cruise ainda não tinha descoberto a religião da ciência.
Ali vive a filha que habitou um armário e o filho que pôs cola no cabelo. A mãe secretária, professora e, recentemente, artista e o pai que, dizem, escreverá um livro.
Mas a família foi crescendo e cantando outras canções. Criaram um estilo luso-espanholo-brasileiro e recentemente anunciaram que incorporarão também uns ritmos americanos, daqueles que surgiram nos ambientes académicos tradicionais.
Os anos passaram e agora ao pai dói-lhe um joelho e à mãe o dedinho do pé. Descobriu-se que a filha foi um erro genético e que o filho, dizem, ganhará o prémio Nobel.
Diz-se por aí que falam alto, que têm um humor peculiar e que nunca chegarão a um consenso sobre o acordo ortográfico.
Mas que, apesar do seu novo estilo musical, continuam, todos os anos, celebrando o 7 de Maio, o dia em que o destino decidiu que para aquela família, de aptidões musicais nulas, a música tornar-se-ia uma realidade.
“…É com certeza uma casa portuguesa”.

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