Desde que vivo em Espanha (ou deveria dizer na Galiza?)

Passei a:
- Beber leite todos os dias;
- Achar que comer tortilha a meio da manhã até é um hábito saudável;
- Almoçar depois das duas da tarde;
- Ir ao ginásio depois das oito da noite
- Achar que o jantar é uma refeição inútil;
- Dormir sete horas ao invés de dez;
- Aprender palavras novas todos os dias;
- Limpar a casa aos sábados (com luvas para não estragar o verniz);
- Ouvir o Governo Sombra ao domingo de manhã;
- Pesar quatro quilos a menos.

Deixei de…
- Ver televisão;
- Saber falar italiano;
- Ir ao cinema;
- Usar o telemóvel;
- Ir “beber café”;
- Dizer mal do meu chefe;
- Poder fazer coisas úteis ao domingo;
- Ter paciência para discussões.

E voltei a…
- Ter dossier, cadernos, canetas e marcadores;
- Sentar-me na primeira fila da aula;
- Reclamar dos alunos baldas;
- Ter a certeza que estudar faz-me feliz;
- Odiar conduzir e gastar dinheiro em gasolina;
- Ter que explicar que se diz “Quiavegatto” e não “Xiavegatto”
- Achar que jornalismo é fixe;

Feitas as contas, parece-me uma boa troca.

“Uma tradução brasileira manhosa” é uma frase já ascendeu ao patamar de “expressão feita” em Portugal. Cada vez que a oiço, respiro fundo e pergunto-me sempre a mesma coisa:
Será que todas as traduções brasileiras são realmente “manhosas”, ou são os portugueses que simplesmente não têm a mínima ideia das regras da língua que se fala do outro lado do atlântico?

A depressão pessimista

Eu gosto de Portugal como se gosta de alguém da família. É sangue do meu sangue, um país que não me deram oportunidade de escolher e que, involuntariamente, aprendi a faze-lo meu. Mas nada melhor do que tomar uns “ares de estrangeiro” para nos darmos conta da profundidade de alguns problemas que toda a gente já notou, comentou, aprendeu nas escolas, nos livros e na música, mas que, na verdade, ninguém lhes dá a devida importância. Estou a falar da doença crónica deste país “esquecido na pontinha da Europa”: a depressão pessimista.
Eu, como eterna estrangeira, costumo brincar com os meus amigos quando se põe a ver o mundo negro e digo-lhes: “vá, não sejas tão português”. Os meus pais revoltam-se com o “é melhor pensar que vou perder porque assim não fico tão triste se perder realmente” e eu recrimino esse sentimento quando ele começa, secretamente, a fazer sentido na minha cabeça.
Mas estava hoje a ler o Público, na minha querida rotina de domingo-informativo, e, de repente, fui obrigada a interromper a leitura. Esta cabeça formata para a análise jornalística não conseguia parar de pensar que havia aqui um padrão assustador. Proponho então um “descubra as semelhanças” neste conjunto de citações do jornal:
- “A agricultura não melhora”
- “Os nossos dirigentes políticos não sabem o que nos espera, não têm rumo, perderam a noção dos objectivos”
- “Os jovens portugueses não arranjam trabalho (…) os recibos verdes não dão direito a baixas médicas”
- “O salário mensal não chega a mil euros”
- “Os portugueses não têm casa, nem férias”
- “Já quase não consumimos leguminosas”
- “Maria não devia ter comprado casa”
- “Não nos divertimos tanto como os outros”
- “7,9% dos portugueses não têm um único livro em casa”
- “O subsídio de desemprego não chegava para a renda da casa”,
- “A vida não está fácil para os vendedores”
Eu ia na página 15 do suplemento Pública quando resolvi pesquisar: “Quantas vezes já se escreveu a palavra “não” até aqui?”.
Poupo-vos o trabalho. Em apenas 15 páginas a palavra "não" foi repetida 213 vezes.
E isso é, sem nenhuma margem de erro, assustador.

Nota: Neste post repetiu-se nove vezes a palavra “eu” e o seu respectivo artigo possessivo (e isto porque a língua portuguesa permite, na maior parte das vezes, omitir o pronome).
E isso também é, sem nenhuma margem de erro, assustador.

Com corações de manteiga podemos fazer bolos eternos e ser amigos dos scones.
Ora aí está uma vantagem competitiva.

Cinco dias em Paris

Houve Picasso, Chagal, Monet, Dali e Miró.
Cumprimentei a Mona Lisa e a Vénus de Milo.
Chamaram-me museumfreak e apaixonei-me pelo aquário do Calder.
Houve um reencontro com a Nutella e com as amizades eternas. Houve flashbacks de tempos passados. Aqueles em que a vida era uma mochila e uma guitarra chamada Brígida.
De Paris recomendam-se os crepes, as tardes de sol e os passeios pelo Sena.
Evitam-se os centros comerciais, os malucos do metropolitano e os pedintes a cada esquina.
Em Paris há a Eurodisney e de lá saímos a acreditar que o mundo pode cheirar a pipocas de caramelo e leite de chocolate quentinho.

O guilty pleasure

É uma realidade comum a todas as nacionalidades: existem aquelas coisas, aquelas pequenas coisas sobre o nosso país e os nossos costumes que não fazemos questão que os estrangeiros descubram. São como uns guilty pleasures nacionais que decidimos mantê-los fechadinhos no nosso país e bem longe do conhecimento alheio.
Até que chega o dia em que tudo se vai por agua abaixo numa simples aula de Rádio.
Professor: - A Rádio em Portugal é muito diferente da espanhola.
Marina: - Sim, temos programas….
(o professor interrompe-me e ignora o que eu tentava dizer)
P: - Sim, outro dia estava a conversar com um amigo que me disse que no vosso país nunca passaria na rádio um tema português que foi um hit aqui no Varão passado…
M: Ah sim? Qual era?
P: Um sobre uma cabrita….
(Não, não não, que cabeça estúpida e destorcida. Só porque se falou numa cabrita já comecei logo a pensar na música do Quim Barreiros. Acho que tenho ido ultimamente a demasiados arraiais…)
P: Era assim meio pró ordinário….
(Não! Ataque Cardíaco. Não!)
M: Os peitos da cabritinha? (medo, medo, medo…)
Turma em coro: Sim! Essa!
(segue-se um triste momento em que assisti a um grupo de espanhóis a dizer: “eu goxxto di mamar noxx peitoxx da cabritinha”).

O episódio ensinou-me que existem coisas na nossa cultura que, por mais que queiramos, não podemos esconder. Decidi, então, tornar de uma vez por todas público o guilty pleasure de todos os portugueses.
Chama-se música Pimba e é favor prestar atenção à complexidade da letra que se segue.


A cabritinha - Quim Barreiros

Quem agora se atreve a dizer que o Quim Barreiros não é um génio?

Casar? Quem vai casar?

Já vos tenho falado sobre os meus novos problemas de comunicação. Na verdade sinto um certo orgulho por ter passado (atenção: não deitar foguetes antes da festa) a fase das confusões semânticas e ter chegado a um novo patamar: o problema do sotaque.
Em espanhol “as vogais são mais abertas”, mas “não tão abertas como em italiano”. O “s” é mais sibilado “mas cuidado para não sesear”. No “c” e no “z” mete-se a língua no meio dos dentes. Mas “num mais do que no outro”.
Foi então que outro dia tive uma conversa interessante, que gosto de imaginar o quão surreal deverá ter sido na cabeça do meu amigo:
Marina – Ele não pode vir porque foi à Guiné casar…
Amigo Espanhol – Foi fazer o quê à Guiné?
M – Casar!
AE – Ah, arranjou uma pretinha por lá…
M – Ahahaha. Não, parvo, foi casar com animais.
AE – Como assim?
M – Uma floresta, uma arma, um animal, pum!
AE – Ahhhhh, caçar?
M – Sim, casar.

O mais engraçado desta conversa é que se passou há quase um mês e, até esta semana, não me tinha apercebido do problema comunicacional que tínhamos dito. Outro dia no almoço, esse meu amigo comentou, enquanto estávamos a ter a nossa já famosa discussão de “como ensinar às estrangeiras a dizer bem gilipollas”:
AE - Devíamos ensinar-vos palavras mais úteis, como caçar.
M – Caçar? Que inútil. Quando é que vamos usar essa palavra? – respondi, com o meu melhor tom de superioridade.
E disse uma amiga do outro lado da mesa: “Casar? Quem vai casar com quem?”

O teletexto

Hoje tive uma das maiores revelações da minha vida espanhola.
Falando sobre os antecedentes da Internet, o professor pergunta à turma:
- Quem aqui usou o teletexto da última semana?
Eu ri-me. Olhei para baixo e lembrei-me das duas únicas vezes na vida (há muitos, muitos anos atrás) que experimentei carregar nesse botão do comando da TV. Percebi que esta era mais uma daquelas perguntas retóricas que as pessoas que passaram anos sentadas na fila da frente da sala de aula já se habituaram a não cair. Nunca olhar para trás à procura de mãos no ar em perguntas que claramente não terão aderência do público, este é um ensinamento básico para qualquer aluno-primeira-fila.
Mas, de repente, os meus pensamentos são interrompidos por um movimento do lado esquerdo do meu campo de visão.
Estaria mesmo alguém a levantar o braço? Desconcertada olho para o professor com um ar de pânico para que me explique porque havia uma pessoa que, em 2009, estava a admitir que usava o teletexto assiduamente.
E é então que o professor diz com um sorriso de satisfação:
- Bem me parecia
Como assim “bem te parecia?” Não vês que há uma pessoa de mão no ar? - perguntei para mim mesma num diálogo tu-a-tu com o professor – Não vês que isso faz com que a teoria de que em 2009 já ninguém usa o teletexto esteja errada? É então, que num acesso de pânico e terror, resolvo virar a cabeça para trás. O meu mais temível medo confirmou-se: toda a turma tinha o braço levantado.
Eu dou um grito e procuro o olhar consolador das minhas amigas estrangeiras: Que se estava a passar ali?
É então que o professor, ante o nosso olhar de assombro, explica que em Espanha as pessoas são “compulsivamente viciadas” no teletexto.
Gargalhadas estrangeiras. Olhares assustados.
Ele brinda-nos ainda com a informação de que diariamente nove milhões de espanhóis visitam este “botão do comando” e que só o ano passado a Telecinco fez 2,5 milhões de euros em publicidade no teletexto.
Eu olhava à volta, implorando por uma explicação. Os meus amigos espanhóis, com um ar meio acavacado, escolhiam os ombros como que a dizer em bom galego: “eche o que hai”
E esta foi a primeira vez que naquela sala senti que o ET não era eu.

Cidadã a fingir

Não sei se todos sabem, mas eu nunca votei.
Logo eu que aos 18 anos deixei de falar aos meus amigos que ainda não se tinham inscrito para votar. Logo eu que me meto em todas as discussões políticas, que tenho sempre um candidato favorito e que no dia das eleições recuso qualquer convite para sair de casa. “Ser cidadão é um trabalho difícil”, costumo dizer como justificação.
Mas é que isto de ter várias nacionalidades e, ao mesmo tempo, não ter nenhuma, é uma tarefa complicada.
Oficialmente poderia votar em três países. Em Itália nunca me cheguei a inscrever, já que “como boa cidadã” que sou, não me parece bem andar a meter-me num país que não contribuo e cujas normativas não me irão afectar de forma nenhuma. No Brasil, como emigrante residente no estrangeiro, tenho direito a votar para Presidente. No entanto, quando transferi o meu direito de voto para Portugal houve um problema burocrático (de razão desconhecida) que me impediu de votar nas últimas eleições - e ainda tive de pagar uma multa!
Já em Portugal, o país onde eu realmente queria votar, não aceitam o meu voto. Teoricamente poderia votar em “tudo menos Presidente”, mas no dia em que cheguei às urnas para votar para Primeiro-Ministro, o meu nome não constava na lista. Problemas burocráticos, parte II, alegaram. Mas, desta vez, sem solução à vista:
- Tem de voltar aqui “mais perto das próximas eleições” e preencher o papel amarelo, depois ir entrega-lo ali ao lado, pedir um requerimento e, quem sabe, o problema se resolva a tempo de votar daqui a quatro anos. Mas olhe que as regras mudam muito. O melhor é ir passando por cá.
Desisti.
Estou agora no meu quarto país, adoptando a minha quarta não-nacionalidade e voltei a deparar-me com o mesmo problema. No domingo foram as eleições autárquicas, que na Galiza correspondem, em termos de importância para a região, às nossas eleições para Primeiro-Ministro.
Então hoje na aula apanhei-me a dizer:
- Foi por isso que eu votei … – parei, olhei a volta, escondi o corado das bochechas e corrigi, como se tivesse sido um erro de espanhol – Foi por isso que eu queria ter votado…
Mas a verdade é que eu durante todos estes anos de isolamento político aprendi a acreditar que o meu não-voto contou como qualquer outro para todas as decisões políticas. Que eu também elegi governantes, que também errei nas minhas escolhas e que também posso exigir que se cumpram as promessas que fizeram em campanha.
Eu posso ser uma cidadã a fingir, mas no fundo, sinto-me de carne e osso. E é por isso que digo sempre que se aproxima uma eleição: “Ser cidadão é muito difícil”.

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