Deuses do aniversário, parte II

9.11.09

Eu não queria fazer anos e tornei-o público. Esse foi o erro.
Na véspera pus os telemóveis em silêncio e escondi-me debaixo do edredom. Desta vez não havia telefonemas de meia-noite. O despertador tocou à hora de sempre e anunciou um dia que seria tudo menos comum. Uma amiga perdida na porta e um pequeno-almoço de presentes e língua familiar. Toca a trabalhar, que temos de viver de alguma coisa. A amiga ficou em casa e eu e os chocolates fomos para o platô. Abraços, beijinhos e doces na barriga dos amigos. Então comecei a receber os parabéns pelos “vinte e dois anos repetidos”, os beijinhos virtuais “por nenhuma razão em especial” e as mensagens com sotaques esquisitos:
- Mas Marina, quantas línguas falas? – perguntaram os meus companheiros.
E eu ria-me e continuava a gerir o tráfico internacional do meu telemóvel recém-carregado.
“Ah, então é por isso que eu gosto de fazer anos”, conclui.
Tinha-me esquecido que a graça disto tudo não é passar dos “patinhos na lagoa” para a “idade do casamento”, que não é ter uma super festa organizada com meses de antecedência, nem presentes à nossa espera em cima da cama. Fazer anos é neste dia, durante um dia, receber notícias de amigos perdidos em combate, ouvir desejos de um ano feliz, de uma noite espectacular. Escutar, muitas e repetidas vezes, que gostam de nós. E nós passamos o dia a lembra-nos do quando gostamos deles. É arranhar idiomas já esquecidos. É dizer “obrigado” mais vezes do que é humanamente possível.
Mas, como todos vocês sabem, eu tinha me metido com os deuses do aniversário e eles não costumam levar essas coisas a bem. Eles tinham me livrado do inferno astral e eu deveria ter desconfiado disso. Chegou o grande dia e todos aqueles desejos amigáveis não adiantaram para nada, porque esse dia, o meu dia, foi um dia mau. Não, mais que mau, foi muito mau, demasiado mau para ser verdade. Mas cada vez que me gritavam, me davam para trás e me faziam cara feia, eu ria-me. Gargalhava e pensava: “hoje é o meu aniversário e os deuses estão a brincar comigo”.
Cheguei então a casa com um punhado de míticas aventuras de um dia de anos falhado que as fizeram rir. Saímos e comemos tudo com batatas num restaurante da moda. Acabamos a noite numa manhã de música espanhola entoada em tom desafinado num palco qualquer. Cantámos. Gritámos e dançámos até doer-nos os pés e a barriga de tanto rir.
Ao chegar a casa, já na manhã do dia seguinte, sussurram-me antes de dormir: “Parabéns, já tens 23”.
Eu pronunciei um último “obrigado” e pensei para mim mesma: “Prometo não voltar a meter-me com os deuses do aniversário”.

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