Resoluções 2010

Chegámos, mais uma vez, ao último dia do ano. O calendário diz-me que é dia 31 de Dezembro, mas este ano não vou passar por aquele nervoso miudinho da folha em branco, pela pressão de decidir quem e o quê entrarão na minha lista de prioridades para 2010. Porque hoje, pela primeira vez em muito, muito tempo, não vou escrever uma lista de resoluções.
A história começou ontem com uma aventura surreal de final feliz. Quando tudo acabou um amigo disse-me com um tom preocupado: “O teu problema é que queres ter sempre tudo sob controlo”.
Eu? Que organizo os cachecóis por cor, que sei quantos tomates como por semana, que nunca chumbei num exame, que me chateio com a minha chefe por deixar tudo para a última hora? Eu? Que faço todos os dias um teste de conhecimento geral, que só janto aos fins-de-semana e que fiz um “plano reforma” com 20 anos? Eu? Uma controlfreak?
Quem me abriu os olhos foi o amigo que tenho de visita cá em casa. Diz-me ele que as listas de resoluções não servem para nada, que o bom é deixar todas as portas, janelas, buracos e rachaduras da vida abertas porque, no fundo, ninguém sabe o que vai acontecer amanhã. Porque ao decidir algo fechas de antemão muitos caminhos e porque, há sempre que recordar, só temos 23 anos.
Então hoje entrei na pasta do meu computador que diz 2009 e abri o documento “resoluções”. Constatei a quantidade de desejos falhados e de metas não atingidas. Pensei em tudo o que alcancei mas que não pude prever em Dezembro daquele ano. Então apaguei o ficheiro e criei um novo: Resoluções 2010.
Escrevi sem hesitar: “A minha resolução para o próximo ano é não ter nenhuma resolução”.
Este é a primeira vez que faço públicas as minhas metas anuais. Espero que dê boa sorte! Um feliz 2010 para todos!

A burra e o telefone

Toca o telefone. Logo o meu telefone que é uma constante pasmaceira. Era, sem surpresas, a Movistar. Queriam convencer-me a mudar de companhia telefónica.
Uma vez tive uma amiga que trabalhou para uma dessas empresas e ela disse-me que eles ganham pela quantidade de gente à que conseguem “largar todo o discurso". Então, desde ai, eu deixo-os sempre falar até o final. Não custa. A técnica é a seguinte: ponho-os em alta voz, continuo com o meu trabalho e quando acabam digo que não estou interessada. Até hoje tinha funcionado de maravilha.
Até hoje.
A senhora falava, falava, falava, falava. Eu ouvia-a ao fundo, quase sem respirar.
No final diz-me: “Então para que morada devo enviar-lhe o telemóvel novo e o contrato?”
- Ah, não, não estou interessada - apresso-me.
- Como não? Se isto só lhe traz vantagens.
- Certo, mas não quero mudar.
Por alguns minutos a senhora continuou a explicar-me porque deveria passar-me à sua companhia. Eu digo-lhe que não, que não quero, que estou satisfeita com a Vodafone e é então que a coisa se exalta.
- Mas você e burra ou quê? Não ouve o que lhe estou a dizer? – pergunta-me a senhora. Assim. De cara podre.
Eu fiquei sem reacção. Ela tinha acabado de chamar-me burra.
Dei uma risadinha cínica e disse-lhe que não admitia que me tratasse assim e que iria desligar o telefone. Então ela põe a cereja em cima do bolo:
- Se desligar nós voltaremos a ligar-lhe. Portanto o melhor que tem a fazer é dar-me agora a sua morada.
Foi automático. Quando dei por mim já tinha a ligaçao terminad e a cara vermelha a ferver de raiva.
Eu queria ter gritado, armado um escandalo, pedido para falar com o seu superior, feito uma reclamação e exigido a despedissem. Mas, naquele momento, a única coisa em que eu pensava era:
"Desde quando é que a técnica agressivo-autoritária triunfa no mundo das vendas?"
Ainda estou incrédula.
Burra. Ela chamou-me burra. Assim. Com todas as letras. B-u-r-r-a.

O "duplo Natal"

Para quem não sabe, aqui vai: os espanhóis têm dois natais. Sim, não me perguntem porquê, mas não lhes bastava um. Antigamente, sempre que começávamos a falar dos "reyes" (que é como quem diz o Natal, parte II, celebrado em Janeiro) eu acabava por soltar um suspiro do tipo:
- Ai, vocês espanhóis têm tanta sorte.
Ao que, invariavelmente, me respondiam:
- Pois é, em Portugal não há Reis, pois não?
Ora aí está uma coisa que me incomoda. É que eu garanto-vos que isto não me passou nem uma, nem duas, nem cinco vezes. Como é que um povo pode estar tão isolado do mundo? Então eu respirava fundo e respondia:
- Não, meus queridos, não há. Mas não é só em Portugal. É no resto do mundo todo.
Seguia-se uma cara de surpresa e uma frase de espírito nacionalista tipo "e viva España!"
Até que outro dia descobri algo que matou definitivamente a minha inveja doS NataiS espanhóis e que enterrou para sempre aquela conversa enfadonha.
- Mas sabes que nós nem sempre recebemos presentes nos reyes? - disse-me uma amiga.
- Ai não?
- Não, se nos portamos mal podemos ganhar carvão.
E foi então que apareceram de catapulta infinitas histórias de amigos, primos de amigos, sogros e cunhados que um dia receberam carvão no dia dos Reis e que choraram tanto, tanto que nem sequer aproveitaram os presente. Mas também houve aquela, aquela uma, pequena e memorável história do amigo do tio do conhecido que ficou tão traumatizado por ter recebido carvão nos Reyes que quando cresceu mandou tapar a lareira lá de casa.
Portanto, quando passearem por Espanha e vislumbrarem casas sem chaminé gritem lá para dentro:
"Quem é que vos mandou ter dois Natais?"
E esta é a história que vou contar para o resto da vida sempre que alguém vier para perto de mim vangloriar-se do seu "duplo Natal".

La loteria de Navidad

O meu primeiro contacto com a dita cuja foi pouco tempo depois de chegar a Espanha.
— Alguém sabe qual é o dia do ano em que se vendem mais jornais? – pergunta o professor.
E respondem os alunos em coro (estrangeiras excluídas):
— No dia 22 de Dezembro.
O dia em que saem os resultados da “loteria da Navidad”. Porque aqui em Espanha é assim. Sabes de cor o teu aniversário, o dos teus pais, a data de um ou dois feriados, mas nunca, nunca te esqueces do dia em que se publicam o resultado da lotaria de Natal.
O frenesim começa a finais de Novembro. E quando digo, frenesim, meus amigos, pensem em filas gigantescas, horas de espera, sangue e violencia. Porque há que comprar a lotaria em cada sítio por onde passamos. A da empresa, a do restaurante onde almoçamos, a do supermercado, do café da esquina e do clube de futebol. Há que comprar um número no Sol e, claro, ficar horas na fila para conseguir a da Doña Manolita. Porque “Y si toca?” ? E se eles ganham e nós não comprámos?”. E então lá vão os espanhóis gastando 20 euros cada vez que vêem um número “bonito” à frente. E, à medida que o Natal se vai aproximando, mais frequente são estas conversas:
- Ai, este ano estiquei-me. Já comprei 7 lotarias – que conste que isso representa 140 euros – e ainda tenho de comprar mais três.
E eu, invariavelmente rio-me. É impossível conter a minha veia de estrangeira.
- Porque te ris Marina? – pergunta um novo no grupo
- É que a Marina “não acredita nessas coisas” – diz alguém em tom de troça
- Como não? – revolta-se a mesa
E eu digo e volto a repetir. Vezes e vezes sem conta.
- Recordo-vos que as chances de ganhar são de 1 em 85.000 – ruídos na mesa – e, sinceramente, esse fenómeno assusta-me.
O diálogo que se segue, também já o tenho decorado:
- Mas imagina se voltas de ferias e nos “tocou”?
- Vou ficar feliz por vocês. Mas se não vos tocar, depois conto-vos tudo o que fiz com os 150 euros que não gastei na loteria de Navidad.
Eles não me percebem e eu não os compreendo. A única coisa que posso garantir é que há vendedores de lotaria que pedem, neste altura do ano, escolta policial já que são cada vez mais frequentes os assaltos com violência às casas lotéricas. Há também aqueles que ficam mais de cinco horas na fila de uma portinha no centro de Madrid, porque ali “já tocou em vários anos”. “Mas vocês não percebem que o sorteio é totalmente aleatório?”. Não, eles não percebem. “Não acreditas em sorte Marina?”, “Não, acredito em trabalho árduo”, mas isso deve ser um trauma de infância.
Feliz Natal a todos e, para os que jogaram, boa sorte. Falamos quando voltar de ferias!

* O jogo funciona mais ou menos assim. No verão põe-se à venda 185 series de 85.000 números. Cada serie é vendida por décimos (20 euros cada um) o que significa que em Espanha estão a venda anualmente 157.250.000 bilhetes de lotaria de Natal. E, sim, vendem-se praticamente todos. A razão? Estão em jogo 3.000.000 de euros (300.000 por cada décimo).

A plena integraçao linguística

Hoje estava a conversar com uma amiga quando ela me diz:
-Tens mesmo de ver “Trúêblut”, aposto que vais gostar.
Então eu parei. Olhei para ela fixamente e pensei: “Va, concentra-te, tu consegues, esforça-te um bocadinho mais”. Fiz um repasso mental a todos os nomes possíveis e, cinco segundos depois, gritei de alegria
- Ah, a dos vampiros?
Ela sorriu e continuo a falar. Eu abstrai-me. Era a primeira vez que tinha conseguido acertar uma tradução inglês-espanhol. Este era um grande momento
Então cheguei a casa, liguei o computador e, com um sorriso vitoriosa, vi o primeiro episódio de True Blood. Não gostei, mas dei play ao segundo.
Agora estou, feita pateta, a ensaiar a primeira frase que vou dizer amanhã quando chegue ao trabalho:
- Ana, ontem vi dois episódios de Trúêblut
Não é todos os dias que uma serie da-nos o passaporte de entrada para a plena integração linguística.

O verdadeiro espirito de Natal

Hoje de manhã convidei-me a mim mesma para ir às compras. E lá fomos nós, eu e eu, para o centro de Madrid à procura de um presente de Natal. As lojas estavam lotadas e o ar condicionado no máximo. Então toca a tirar o gorro, o casaco, o cachecol e a camisola. Prova uma roupa, outra, esta não fica bem, aquela faz-me gorda e, de repente: “Onde está o meu casaco?” Procuro por aqui, por ali, por todos os sítios que estive e nada. “ Não há problema”, pensei, “os senhores da loja devem tê-lo arrumado”.
Estava eu então a dirigir-me à caixa para perguntar pelo digo abrigo quando reparo que há uma rapariga na loja a usar um casaco igual ao que eu tinha perdido.
Primeiro surpreendi-me, Que coincidência, disse para mim mesma, é um casaco tão velhinho e esta rapariga tem um igual. Mas depois parei.
Espera ai.
Comprei este casaco há quatro anos. Em Portugal. Qual seria a probabilidade de uma pessoa, em Madrid, ter o mesmo casaco que eu no exacto momento em que o meu desapareceu?
- Olhe, desculpe, esta pergunta pode parecer um pouco absurda, mas esse casaco que está a usar é seu?
- Claro que é meu, que raio de pergunta – diz a loirinha impertinente.
- É que eu acabei de perder um casaco igual a esse.
A rapariga muda de cor.
- Está a insinuar que eu roubei o seu casaco?
- Mmmm… sim e gostaria que mo devolvesse.
A conversa tinha subido de tom e os seguranças da loja aproximaram-se:
- Algum problema?
- Esta senhora roubou o meu casaco. Eu deixei-o numa prateleira, ela tirou-o, vesti-o e agora diz que é seu.
- A senhora pode provar o que está a dizer? – pergunta-me o segurança.
- Não, mas pode ver nas câmaras de vigilância
- Não temos câmaras de vigilância.
Isto não me podia estar a acontecer. Roubaram-me o meu próprio casaco, na minha cara, eu identifiquei o ladrão e agora não o posso recuperar? Queria chamar a polícia, mas “não vai servir de nada porque é a palavra de uma contra a outra”. Queria bater-lhe, puxar-lhe os cabelos loiros oxigenados, pisa-la, cuspir-lhe na cara.
- Senhor segurança, convenhamos, não é preciso perceber muito de moda para ver que esse casaco fica enorme a esta mulher. O casaco não é dela! Não vê que é o meu número?
Não, ele não via. E era melhor baixar o tom ou ele teria de me convidar a sair do estabelecimento.
Então fiz tudo de maneira instintiva: virei as costas, respirei fundo, escolhi um casaco novo, paguei, vesti-o e voltei a passar pelo meu casaco velhinho personificado de brasileira de cabelo oleoso:
- Olha, oh ladra, comprei um casaco novo – gritei-lhe da outra ponta da loja – muito mais giro que o que me roubaste. O meu outro casaco estava velhinho mesmo, pode ficar para ti, não faz mal, eu ofereço-to. Considera-o como um acto de caridade.

O Natal faz destas coisas. Ressuscita o lado mais solidário que há em nós.

A geração desencanto

Fomos enganados.
Disseram-nos que seriamos melhores, mais cultos, que estaríamos no topo do mundo, que a educação era a nossa principal virtude. Então sentámo-nos naquelas mesinhas de madeira, enchemos cadernos de canetas coloridas, recitámos poemas em voz alta. Tivemos noventas, cens, dezoitos e vintes. Usámos óculos e dicionários. Fizemos da vida uma espera. Uma espera pelo almejado futuro esplendoroso.
Entrámos nas melhores faculdades, aprendemos sobre Foucault, Heidegger e Nietzsche. Semiótica, teoria do texto e cultura contemporânea. E como se não bastasse, viajámos. Conhecemos o globo com a palma dos nossos pés, experimentámos novas culturas, brindámos em línguas estrangeiras, discutimos política com comunistas e fascistas, com democratas e republicamos. Aprendemos línguas, lemos os clássicos, ouvimos as vanguardas musicais. Absorvemos o mundo.
E quando voltámos, esperámos. Porque se fores bom, as portas nunca se fecharão. Disseram-nos um dia, e nós, ingénuos, acreditámos.
E então aqui estamos nós, esta geração enganada. A geração dos livros, dos cursos e dos mestrados. A geração do estudo, quando, de repente, o que importa já não são os manuais. É a crise, dizem. E nós somos os azarados. Ou talvez sejamos apenas jovens enganados, absorvidos pelo sistema. Demasiados desiludidos para poder lutar. Porque garantiram-nos que seriamos melhor que os nossos pais e o nossos filhos também nos superariam. Mas, de repente, parece que o mundo está a girar ao contrário e nós, bem… Nós já nem sequer sabemos se queremos ter filhos.

O Fernando, parte II

- Ele sabe ler os lábios – tranquilizou-me o camera – basta que lhe fales sempre de frente e que separes bem as palavras.
Parecia fácil.
Depois de algumas tentativas falhadas e outras que foram salvas pela linguagem universal, concluímos: “É que os estrangeiros devem vocalizar as palavras de maneira diferente”.
Mas eu insistia, esforçava-me, vo-ca-li-za-va o melhor que podia e no final recebia sempre o mesmo sorriso com os indicadores a girar em espiral: “repete”. E eu, frustrada, repetia uma e outra vez, cada vez mais intensamente. O Sérgio, vendo o ridículo da situação, salvou-me enquanto me piscava o olho com um ar paternal:
- Marina, ele não ouve, não vale a pena gritares.
Corei pela segunda vez na mesma tarde.
A curiosa dupla de jornalistas trabalhava para um programa de linguagem gestual. A ideia era que os actores da nossa serie dissessem uma frase utilizando a “lengua de signos”. O Fernando era o professor. Ele explicava, pacientemente, cada gesto e a expressão fácil que este acarretava. Era preciso “dizer” tudo seguido, “como se fosse uma frase”, explicava o santo professor que nem sequer se importou que gozássemos com a palavra “actor” por parecer-se a um passo da “Macarena”. No final do vídeo, os actores deveriam ler em voz alta a frase que tinham acabado de “gesticular”.
Quando o primeiro actor acabou a sua leitura, pareceu-me que a voz off tinha ficado perfeita e resolvi perguntar:
- O que achas Fernando? Serve?
Então ele olhou para mim com uma enorme cara de burla e disse com a sua voz de soluços:
- Não sei Marina, é que não consegui ouvir.
E eu corei. Outra vez.

O Fernando

Tínhamos combinado no platô às quatro da tarde, mas a gravação estava atrasada. Como sempre, atrasada. Então eu fui ao bloco de notas buscar o número de telefone que a rapariga de produção tinha me passado durante a manhã:
- O Fernando, o jornalista, vai com o Sérgio, o camera. Tens onde apontar o número do Sérgio?
Eu tinha. Apontei o seu telefone num carderninho e não duvidei. Na hora do aperto, toca a marcar o número, mas o Sérgio, claro está, estava a guiar e todos sabem que falar ao telemóvel e conduzir são menos 2 pontos no “carnet”.
Então eles chegaram, antes do tempo, mas chegaram. O Fernando e o Sérgio.
- Marina, encantada – apresentei-me. E lá comecei a largar o meu speech. Que “sabem como é uma rodagem, tudo muito imprevisível”, que “as sequências com muita gente são complicadas”, que, “desculpem”, mas vão ter de “esperar um pouquinho”. Mas “já agora querem visitar o platô?”, “é por aqui, eu faço-vos um tour”. E eles acenavam com a cabeça e seguiam-me. Então “aqui vive a família mais rica” e “esta é a cozinha dos mais pobres” e “aqui são as barricas artesanais” e “aqui onde o vinho fica a fermentar”, digo eu no meu sotaque de espanhol estrangeiro.
E então olho para o relógio e respiro fundo. Tinham passado uns 15 minutos, mas não poderia mantê-lo entretidos a tarde toda. “Acho que ainda vão ter de esperar uma meia hora”, minto. E, pela primeira vez, olho-os nos olhos. Constato que o Fernando tem um ar assustado:
- Até que horas vocês podem esperar? - pergunto-lhe, prevendo o pior.
Ele abre um sorriso e dá-me um beijo:
- Olá, sou o Fernando, sou surdo – diz-me com aqueles sons quase imperceptíveis de quem não ouve a sua voz.
Ele ainda estava a apontar para o ouvido quando eu caí em mim. Para ele tínhamos ficado na parte das apresentações.

Proprio quella, del Piemonte

Eu sou assim, esquecida. Memória de peixe, come queijo, cabeça de velha. Sou como o armário lá de casa: entra um novo sai o antigo. Sou pessoa do presente aterrorizada pelo passado.
Mas ontem houve uma ideia que me preocupou especialmente e que me deixou toda a noite a dar voltas entre os meus dois edredons nórdicos: “E se um dia me esqueço dela?”, perguntava à minha cabeça oca.
Da cidade dos gelados de iogurte que acompanhavam as tarde de frio, das focaccias compradas na portinha da Via Pó. Daquelas arcadas que guardam tantos segredos. Do Xó e do sangre de Judas. De Bardonecchia e da Notte Bianca. Do Nano e o seu amigo Strano. Do LD e da Strada del Fortino. Do Sponda. Seria impossível esquecer o Sponda.
A semana passada apercebi-me que já nao me lembrava do andar em que vivia. Do numero da minha porta, nem do meu telemóvel. Essas memorias já perdi. Já se foram para a caridade junto com a roupa usada.
Mas e se o tempo passa e eu esqueço-me também dos Murazzí e da Piaza Vittorio Emanuelle? Do monte Capuccino e do tram 16. Da Porta Nuova, da Porta Susa e do eterno "ritardo dei treni". Da Fontana de Trevi e daquele chinês ao lado do cinema. E se daqui a uns meses já não me lembro da Guianduia, da Mole e de Soperga? Logo agora que já clicaram no “delete” em todas as músicas de apoio ao Toro.
Então eu escrevo. Compulsivamente, escrevo. O nome da Piazza Castelo e da Piazza San Carlo. Da Rondò della Forca com gli extracomunitari. Do Valter, (recuperei o seu nome do fundo do caixote, um autentico bem ao ambiente) e do Manuale de Amore. Tento convencer-me que os espaços físicos são secundários e o que importa mesmo são os momentos, aquelas histórias contadas, recontadas e finalmente calcadas nesta cabeça de peixe morto. Mas quanto mais anoto, mais me aterrorizo. Profundamente e dramaticamente, aterrorizo-me.
Porque subjacente a todas esta palavras, paira a inevitável pergunta:
"E se um dia acordar e não me lembrar sequer do nome da minha Never Land?"
Torino, proprio quella, del Piemonte.

A menina namoradeira

Comecei a namorar aos 14 anos. Ele era o meu melhor amigo. Estivemos juntos uns 6 meses. Sentávamos um ao lado do outro no cinema e comíamos Mcdonalds. Namoro moderno, pensava. Um dia ele deixou-me. Assim, sem mais nem menos. Rapidamente fiz um novo melhor amigo. Este era diferente, mais normal, pode-se dizer. Então com ele planeei uma vida lado-a-lado, sonhei-nos a contar aos nossos filhos a nossa longa história de amor. E então chegou o dia em que ele me disse: “Marina, temos de conversar”. E eu chorei. Chorei muito, como se a vida não tivesse mais sentido. A minha mãe, abismada, dizia-me “filha, és muito nova, a vida continua” e eu nesse momento estive a ponto de estrangula-la, como é que ela não via que ele era o amor da minha vida? Seis meses depois (e vários litros de lágrimas derramados) tive um novo namorodo. (Quem diria, ahm?) Ah, mas esse nem conta. Então veio o outro, logo a seguir, quase emendado. Namoro especial esse, prefiro não comentar. Então o trauma do namoro anterior levou-me a tomar uma decisão radical: queria estar solteira durante um ano. Uma semana depois do prazo superado, la me meti eu em mais uma. Namoro longo. Namoro estável. Sem grandes sobressaltos (nem grandes emoções). Um dia ele arranjou outra. Terminou comigo por telefone e, pela primeira vez, senti que me doeu o coração, aquela dor profunda, uma pontada demasiado forte para aguentar. E não teria suportado se não tivesse encontrado o meu seguinte namorado, e que lufada de ar fresco. Secou-me as lágrimas e pôs-me a sorrir. Viajámos o mundo e comemos batatas fritas, até que um dia, puf. “Foi melhor assim”, dizemos até hoje, mas no fundo ninguém o sabe ao certo.
Tudo isto para concluir que há oito meses que não tenho namorado. O que é praticamente um período de namoro solitário, mas tem sido difícil. Não sei se é feliz ou infelizmente mas não posso acabar comigo, nem vice-versa. Não me levem a mal, acho mesmo que sou um bom partido, mas só queria alguém que me oferecesse gomas quando estou triste. E, entretanto, a vida segue, e hoje vou ao cinema com o meu novo namorado, que é como quem diz, comigo mesma.

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