O amigo do autocarro.

17.10.08

Tenho, desde há muito tempo, um amigo no autocarro do trabalho.
Na verdade, a nossa amizade começou de uma forma um tanto invulgar.
Eu chegava ao autocarro, mp3 ligado e livro na mão, e lá estava ele, a conversar no seu tom de voz de decibéis elevados.
Era como um ritual. Desligava a música e guardava o livro. Punha-me a ouvir atentamente (como numa lição de incursão pela língua espanhola) as suas palavras. De início era apenas uma questão gramatical. Escutava-o com ouvidos analistas, aproveitava-me dele como ferramenta de aprendizagem gratuita.
Mas a rotina dos dias foi apagando as regras de gramática e, aos poucos, já ansiava para que o autocarro chegasse e dava comigo a pensar: “será que vai lá estar o senhor falador?”. Ele estava todos os dias.
Começou assim a nossa amizade. Entretinha-me a ouvi-lo (enquanto conversava com outros autocarreantes) e a treinar, mentalmente, as respostas que lhe daria se, de facto, participasse na conversa.
E já éramos tão íntimos... Ele achava que a “surpresa de Outubro” seria que o McCann iria “despedir” a Sarah Palin, eu achava que a surpresa tinha sido antecipada pelo episódio “sarah / marido de sarah / ex cunhado dos palin”. Ele achava que para que o Obama perdesse era necessária uma guerra. Eu achava que bastava que acontecesse outro episódio Tom Bradley. Ele tem um amigo que subornou o médico para lhe dar um atestado de depressão. Com isso, conseguiu uma “baixa vitalícia”. Achava o seu amigo genial, eu reprovava a atitude.
E assim seguia a nossa amizade. Diariamente. Ele falava e eu pensava.
Até que chegou o grande dia. Entro no autocarro. Vazio. Só o meu amigo sentado num canto. Sentei-me no lado oposto.
Pergunta-me, então: Trabalhas na fundação?
(sim, estava a dirigir-se a mim!)
Falamos um pouco e vem o comentário.
- Mas não és espanhola
- Ah, me encanta Portugal
A partir desse dia, a nossa amizade tomou uma nova dimensão. Já que agora, ao invés de pensar, intervinha, realmente, nas conversas.
E há um dia em que diz:
- Acho que o ensino nas escolas públicas e privadas é basicamente o mesmo, eu pus as minhas filhas na privada porque me parece que os contactos que vão fazer para a vida futuras são muito melhores do que na pública.
E eu comento:
- Essa visão parece-me um pouco elitista, não achas?
(de notar como os meus ideias de direita tem vindo a esbater-se com o passar dos anos)
E foi assim que, finalmente, tive a minha primeira conversa culta em espanhol: “a influencia do meio envolvente da formação de uma criança”. E eu que nunca pensei que saberia dizer isto “em língua estrangeira”.
E no final da conversa ele disse: “não precisas de aulas de espanhol, falas perfeitamente”.
Eu ri-me e pensei: A opinião dos amigos não conta!

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