O Samhain

“A Coruña não se vende a essas festas capitalistas” explicava-me um amigo, a propósito do Halloween. “Nos aqui não celebramos o Halloween americano, mas, o Samhain, uma festa de tradição celta”.
“A sério? E o que fazem de especial nessa festa?”, pergunto fascinada, imaginando gaitas de foles e danças tradicionais.
“Vestimo-nos de mortos e bruxas e saímos à rua”
“Isso parece-me o Halloween”, comento decepcionada.
“Mas o halloween é inspirado nesta tradição celta”, explica
“Então é igual ao Halloween, mas com outro nome?”
“Não, é o Samhain”, diz convicto.
Adoptei o nome e não fiz mais perguntas. Afinal, o que me passou pela cabeça quando imaginei que os Coruñeses iriam vender-se a esta “festa americana e capitalista”?
Ingénua.
Por agora, já tenho a casa empestada de aranhas, pinturas faciais, roupas rasgadas e chapéus de bruxa. Tenho na ponta da língua o “tuco o trato” e o grito de terror.
Que venha o Halloween, ops, o Samhain!
E eu serei o diabo por uma noite (e, quem sabe, aprenderei a tocar a gaita de foles!)

A Primark

A propósito da abertura de um novo shopping na Coruña (na verdade o único shopping propriamente dito do ponto de vista português da coisa) e da sua respectiva loja-estrela, a Primark (paraíso dos tops a 3 euros!):

Marina – Também foste ao shopping no Sábado? Que tal a Primark?
Amiga Espanhola – Eu até gostei do espaço, mas não gostei muito dos quadros.
M – Dos quadros?
(estes espanhóis são mesmo estranhos….)
AE – Sim, não gostei muito…
M – Não reparei nos quadros…
(conversa a tornar-se surreal…)
AE – Não eram lá muito bons.
(assustador)
M – É que eu fui lá para comprar roupa!
(sorriso de “esta tipa é creepy!”)
AE – Pois, mas de que vale haver uma loja tipo Primark na coruña se os quadros não valem nada?
(ou algo de errado se passa com esta tipa, ou…)
M – Um momento. O que são “quadros”?

Como já tem vindo a ser comum na minha vivência por terras galegas, esta conversa foi mais uma daquelas que teve dois (assustadores) pontos de vista.

Marina – Também foste ao shopping? Que tal a Primark?
Amiga Espanhola – Eu até gostei do espaço, mas não gostei muito dos tecidos.
M – Dos tecidos?
AE – Sim, não gostei muito…
(detesto conversar com estrangeiros, tenho sempre de repetir as coisas duas vezes)
M – Não reparei nos tecidos…
(Como assim vai a uma loja de roupa e não repara nos tecidos?)
AE – Não eram lá muito bons.
M – É que eu fui lá para comprar roupa!
(Não me digas? Que tipa tão fútil!)
AE – Pois, mas de que vale haver uma loja tipo Primark na coruña se os tecidos não valem nada?
(Começo a perder a paciência para estes estrangeiros consumistas)
M – Um momento. O que são “tecidos”?

Parece que em espanhol “tela” significa tecido e não “quadro” como a Marina precipitadamente concluiu.
Não será preciso reforçar que a “amiga espanhola” nunca mais me olhou com os mesmos olhos e, sempre que passo por ela ouço a boca “que tal os quadros da Primark?”
Ossos do ofício.

O decisivo compasso de espera

Concluo, após algumas incursões em “países estrangeiros”, que o mais difícil para se ser “nativo” não é falar a língua, nem saber de cor a história. Conhecer a bandeira, o hino e o completo corpo presidencial.
Imigrar é, acima de tudo, adaptar-se a uma nova cultura. Se os portugueses vêm como falta de respeito rasgar um folha de papel sem pedir licença, para os brasileiros é uma ofensa ver alguém a pousar a bolsa no chão. Se para os italianos os beijinhos são ao contrário, para os alemães não há beijinhos nunca.
Dos espanhóis conhecemos a siesta, as refeições a horas tardias e as frases intercaladas com asneiras. Mas há um pequeno detalhe que ainda não me consegui habituar.
Em Portugal existe aquela conversa de circunstância que chega até a desesperar:
Olá, tas bom?
Sim, e tu?
Também.
Há diversas teorias sobre a pertinência da pergunta e da resposta e outra tantas dissertações sobre as pessoas que não cumprem o protocolo.
Pois os espanhóis enquadram-se no segundo grupo.
!Hola Marina! ?Que tal?
Muy bien ?y tu?
E ai gera-se a confusão na cabeça dos nuestros hermanos. Não porque por aqui não exista o hábito do “e tu?”, mas porque existe um pequeno, ínfimo e decisivo compasso de espera entre o Muy Bien (mais alguma informação adicional) e a pergunta que se lhe segue.
Falta-lhes a mecânica do discurso, a robotização apática da pergunta que não quer saber a resposta. E, ao chegar aqui, de protocolo traduzido, espalhamos a confusão e pintamos, outra vez, na nossa testa o famoso carimbo de “estrangeiro”
E como para qualquer problema espanhol, a solução volta a ser a mesma: espera, pausa, relaxa.
Bem, isto, como já é de costume, com a devida margem de erro.

O amigo do autocarro.

Tenho, desde há muito tempo, um amigo no autocarro do trabalho.
Na verdade, a nossa amizade começou de uma forma um tanto invulgar.
Eu chegava ao autocarro, mp3 ligado e livro na mão, e lá estava ele, a conversar no seu tom de voz de decibéis elevados.
Era como um ritual. Desligava a música e guardava o livro. Punha-me a ouvir atentamente (como numa lição de incursão pela língua espanhola) as suas palavras. De início era apenas uma questão gramatical. Escutava-o com ouvidos analistas, aproveitava-me dele como ferramenta de aprendizagem gratuita.
Mas a rotina dos dias foi apagando as regras de gramática e, aos poucos, já ansiava para que o autocarro chegasse e dava comigo a pensar: “será que vai lá estar o senhor falador?”. Ele estava todos os dias.
Começou assim a nossa amizade. Entretinha-me a ouvi-lo (enquanto conversava com outros autocarreantes) e a treinar, mentalmente, as respostas que lhe daria se, de facto, participasse na conversa.
E já éramos tão íntimos... Ele achava que a “surpresa de Outubro” seria que o McCann iria “despedir” a Sarah Palin, eu achava que a surpresa tinha sido antecipada pelo episódio “sarah / marido de sarah / ex cunhado dos palin”. Ele achava que para que o Obama perdesse era necessária uma guerra. Eu achava que bastava que acontecesse outro episódio Tom Bradley. Ele tem um amigo que subornou o médico para lhe dar um atestado de depressão. Com isso, conseguiu uma “baixa vitalícia”. Achava o seu amigo genial, eu reprovava a atitude.
E assim seguia a nossa amizade. Diariamente. Ele falava e eu pensava.
Até que chegou o grande dia. Entro no autocarro. Vazio. Só o meu amigo sentado num canto. Sentei-me no lado oposto.
Pergunta-me, então: Trabalhas na fundação?
(sim, estava a dirigir-se a mim!)
Falamos um pouco e vem o comentário.
- Mas não és espanhola
- Ah, me encanta Portugal
A partir desse dia, a nossa amizade tomou uma nova dimensão. Já que agora, ao invés de pensar, intervinha, realmente, nas conversas.
E há um dia em que diz:
- Acho que o ensino nas escolas públicas e privadas é basicamente o mesmo, eu pus as minhas filhas na privada porque me parece que os contactos que vão fazer para a vida futuras são muito melhores do que na pública.
E eu comento:
- Essa visão parece-me um pouco elitista, não achas?
(de notar como os meus ideias de direita tem vindo a esbater-se com o passar dos anos)
E foi assim que, finalmente, tive a minha primeira conversa culta em espanhol: “a influencia do meio envolvente da formação de uma criança”. E eu que nunca pensei que saberia dizer isto “em língua estrangeira”.
E no final da conversa ele disse: “não precisas de aulas de espanhol, falas perfeitamente”.
Eu ri-me e pensei: A opinião dos amigos não conta!

Espanha não, Galiza

Tenho ouvido, ultimamente, vezes sem conta, a mesma incorrecção. Prende-se com a seguinte pergunta: “Como está a vida em Espanha?”
Pois vou, de uma vez por todas, corrigir o erro crasso:
Eu não vivo em Espanha.
Vivo na Galiza.
A Galiza tem uma bandeira, um presidente e um jeito de ser. Tem uma língua só sua (que, prometo, estou a tentar afeiçoar-me, apesar de ainda me parecer um português cerrado tipo gente rude do campo) e os seus próprios erros gramaticais.
Os galegos só lêem os jornais da região onde se encontram manchetes como: “O desemprego em Espanha ronda nos 14%, na Galiza está perto dos 8”. Na Galiza há movimentos migratórios, terras marginalizadas, palavras próprias de cada região. Há indústria galega, comida galega e banco galego. Consta que a Caixa Galicia, o banco-monopólio da cidade, é o que tem mais depósitos de Espanha, mas isso é um aparte.
Por terras galegas vê-se a TV Galicia, ouve-se rádio regional e fala-se castelhano com vocabulário próprio.
Neste país onde vivo agora há um sentimento nacionalista muito grande.
Por aqui bebemos Estrella Galicia e ouvimos música celta. Bem, também ouvimos música inglesa, cantada por grupos galegos, claro.
E perguntam-me, então: “E a Espanha?”
Para dizer a verdade, não sei bem onde fica, mas deve ser uma localidade bem longe daqui, lá para os lados de Madrid, suponho.

Imersão-integração

É interessante este mecanismo de aprender uma língua através da técnica de “imersão”. Todos sabem que quando saímos de um escola de idiomas, somos lançados ao mundo a falar como freiras. O nosso trabalho de casa eterno é o de trabalhar na nossa integração. Estamos a conversar com alguém e dizemos “responder”, a pessoa segue a conversa usando o termo “contestar”. Pois que seja “contestar”, então. Risca o “responder” da lista e segue em frente.
Pois se a nós “nos gusta” alguma coisa e à pessoa com quem estamos a falar “mola”, então a nós “mola” também, está decidido.
Chamemos-lhe “técnica de integração-imersão”
E sigo eu, diariamente, batalhando nesta guerra linguística que, como o nome indica, está cheia de vitoriosos e vencidos.
E hoje, admito, fui derrotada.
Estávamos todos a almoçar. Conversa vai, vem, e chega ao ponto em que resolvo intervir. Contavam uma história espantosa (não, não repeti o mesmo erro!).
E lá fui eu comentar:
- É caso para aplicar aquela expressão que vocês usam por aqui. Como é mesmo?
(pausa para que a atenção toda se vire para ouvir o meu momento de glória)
- Ah é “bua, neno!”
(silêncio, entreolhares)
- Sabem? Aquela expressão de espanto….
E é então que alguém grita:
- Bua neno!!!
Gargalhada geral. Marina muito aflita, roxa de vergonha, olha em volta, implorando por uma explicação.
Gargalhada continua. Até que uma alma caridosa diz:
- Mas com quem te andas a dar?
Passo a explicar: Estava outro dia na praia e por trás de mim encontrava-se um grupo de rapazes que sempre que queria enfatizar, ou comentar algo com espanto dizia “bua neno”. Foi então que de sorriso matreiro anotei no meu caderninho mental como “expressão a usar” em vista à famosa integração. Seria um sucesso.
Parece que os rapazes que estavam atrás de mim na praia eram “adolescentes chungas” e que “buá neno” é algo como o nosso “aína man”.
É como eu digo. Isto da “imersão-integração” tem o que se lhe diga. Há que saber com quem "emergir" e o momento certo para o fazer. Porque, caso contrário, triunfa o pensamento que hoje vai comigo para a cama: “Afinal qual é o mal de falar como as freiras?”

As "línguas latinas"

Outro dia falava com um espanhol. O rapaz estava muito entusiasmado com o meu apelido internacional e comentou:
- Ah, entonces “parlas” itialiano
Respondo-lhe que sim, numa risadinha forçada de quem já ouviu a boca centenas de vezes.
Diz-me então: “Nós aqui em Espanha também falamos todos mais ou menos italiano, é que sabes, para nós as línguas latinas são bastantes intuitivas e nem precisamos estuda-las”.
Sortudo, o rapaz. Sortudo por me ter apanhado apenas com dois dias de Espanha e na altura ainda não ser muito capaz de me expressar. Mas os meus três anos de aulas de italiano não lhe iriam sair baratos.
Propus-lhe então:
- Mas então se o italiano é intuitivo, porque não conversamos em italiano? (asseguro que a frase não foi assim tão bem construída, mas ele lá me compreendeu. Intuição, diria.)
Rio-se um pouco e começou:
- Bem a gramática é igual à espanhola (erro). E o vocabulário bastante parecido, por exemplo, imagino que “mantequilla” em italiano seja igual, não?
- Não, é “burro”.
- Ah, mas por exemplo, “pallitos”, deve ser “paliti” ou algo similar.
- Na verdade é “stuzzicadenti”.
- Ai, que engraçado. Mas nos verbos, por exemplo, o único que muda é o querer que em italiano é “io vó-gli-u”
- Na verdade pronuncia-se “vôlhô”.
- Parece que eu hoje não estou com muita sorte, mas é o que te digo, nós os espanhóis temos naturalmente jeito para línguas.

Claro que sim. Agora imaginem nas línguas “não latinas”. Muito promissor.

Nota: Às vezes ponho-me a pensar. Porque raio será que o tipo se lembrou de dizer as palavras "manteiga" e "palito"?

Rendida ao "jo"

Na minha última aula de espanhol em Portugal o professor saiu-se com esta:
- Ah, quase me esquecia do essencial. se queres falar bem espanhol tens de aprender a palavra mais utilizada por lá: joder. O resto vem-te com a prática.
Eu ri-me. E ri-me ainda mais quando percebi que “roder” se escrevia com “j” e não com “r” como sempre o imaginara.
Claro que esqueci esta última lição no sótão do meu subconsciente. Afinal eu iria fazer um mestrado e não aprender a falar “calão”. Não estava a pensar pôr-me a dizer asneiras à frente do professor.
Ai não?
Nós temos o “bolas”, o “chiça”, o “raios”, o “caramba”. Todos substitutos bem educados de um completo e muito bem dito “merda”. Mas os espanhóis, como já se tem vindo a comprovar, são uns linguistas muito simples. Ao invés de recorrerem a mil e uma formas de dizerem “merda bem educada” transformaram o “joder” em algo que podemos caracterizar como uma “asneira socialmente aceite”.
Surgem assim o “Joder” e os seus amigos “Jo”, “Jolin”, “Jodar”, “Jodi” no discurso dos grandes executivos e no mais formal ambiente de trabalho.
E eu, que nunca fui dada a asneiras, acabei por aceitar esta nova forma de estar.
Hoje disse pela primeira vez: “!Joder, que fuerte!”, claro que soou muito estranho, mas senti que foi, sem dúvida, um grande passo para este novo estatuto que apelidei de: “o estado de rendição ao jo”.

! Hasta Luego !

As despedidas ultimamente têm criado um nó mental na minha cabeça de falante de português (metáforas à parte, sejamos agora objectivos):
Adeus, dizes quando te vais embora. Até logo, quando vais ver em breve alguém. Até já, é quando se vão encontrar num curto espaço de tempo. Até amanhã, vais vê-lo no dia seguinte. Até para a semana. Até. Tchau. Se pensarmos bem, chegamos mesmo a juntar duas expressões, formando coisas do tipo “Adeus, até amanhã”.
Agora imaginem um falante de português que chega a Espanha e se depara com a seguinte situação:
Se estas a sair de uma loja, a descer de um autocarro, se combinaste encontrar um amigo daqui a cinco minutos ou te despedes de um professor que vais ver amanhã. O cumprimento é sempre o mesmo “hasta luego”.
Mas como dizer “hasta luego” a uma pessoa que não voltarás a ver “luego”, nem nunca mais? Como não dizer “hasta mañana” ao teu chefe que vais ver amanha e não “mais logo”?
A verdade é que já experimentei sair-me com o “hasta manãna” ou o “adios” e a reacção normal e uma cara de confusão, de alguém a quem trocamos as voltas, que embaraçado acaba por dizer “tchau” ou somente “venga” com um sorriso de “que-engraçada-esta-estrangeira”.
“Superado” o obstáculo linguístico (as aspas significam que foi tudo assimilado mas que o nó mental ainda não se desfez), surge o segundo problema com a maldita expressão. Mas eles afinal pronunciam “hasta luego” ou “hasta logo”? A dúvida perseguiu-me por uns dias e tinha acabado por concluir que era uma questão de sotaque. Os galegos diziam de uma maneira, os de fora de outra, mas as excepções começavam a inquietar-me. Resolvi, então, perguntar às minhas amigas (que têm uma paciência incrível para as minhas dúvidas existenciais).
- Porque é que tu dizes “hasta luego” e ela diz “hasta logo”? É porque tu és daqui e ela é de Valência?
- Como assim?
- É que vocês pronunciam “hasta luego” diferente
- Não… é igual.
- Não é nada. Ela diz “hasta logo”.
- A mim soa igual.
- A mim também – acrescenta a outra olhando-me com um ar assustado.
É nestas alturas que amaldiçoo o português por ter “tantos fonemas”. Afinal o nosso ouvido “apurado” ouve além do limite admissível do espanhol.
Só para que conste, eu decidi que vou pronunciar “luego” para que me soe mais “español”, nem que seja para impressionar os meus amigos portugueses. E decidi também que quando for grande vou por os espanhóis a aprenderem a despedir-se como deve ser.
Bem, tudo isto com devida (e bem grande!) margem de erro. !Hasta Luego!

Morriña

Há um sentimento comum aos chamados “cidadãos do mundo”. É o amigo que ficou longe, o companheiro que anda a vaguear por outros continentes, o namorado que se perdeu por outro país.
Em Portugal chamamos-lhe Saudade.
Desde pequenos que nos ensinam na escola que Saudade é uma palavra que só existe na nossa língua, e isso, claro, dá-lhe um certo encanto.
A primeira vez que vi este mito ser derrubado, foi numa aula de alemão. O professor ensinava-nos vocabulário e, no meio de outras palavras, diz “Sehnsucht”. Tradução: Saudade.
Mas como? Não! Não é possível. Saudade é uma palavra que só existe em português, contestamos.
- Isso é um mito parvo.
Passei semanas, meses, contando “a minha nova descoberta” a toda a gente e corrigindo, de sorriso matreiro, sempre que alguém se saía com a tal frase-lugar-comum.
Mas à medida que os anos foram passando, e os meus conhecimentos de alemão deteriorando-se a olhos vistos, fingi esquecer-me desse pormenor. O mito tinha o seu encanto, e, como nos ensina o Big Fish, há coisas que valem a pena manter.
Mas outro dia, o inevitável aconteceu. Estava a conversar com uma amiga quando ela me diz que “echa un montón de menos” o seu “novio”. Não é que o seu namorado está a viver na Guatemala?
E ela prossegue, enfatizando: “claro que tengo morriña”. E eu, como é norma nas conversas fora do vocabulário-escola-de-espanol, coloco a minha cara de dúvida e digo: “Morriña?”
Ela, que estuda português há vários anos, esclarece “Saudade”.
É então que respondo, numa tentativa derradeira de preservar o Big Fish da grande história: “sempre me ensinaram que saudade é uma palavra só portuguesa” e ela diz com o seu ar de menina despachada: “que tonteria, en aleman es Sehnsucht”. (moral da história, não tentar enganar conhecedores de idiomas).
O mito foi oficialmente deitado por terra, mas no fim acabei por concluir: nem todas as histórias são dignas do Big Fish, há algumas que têm mais encanto quando contadas como na realidade. Afinal, é muito bom poder dizer em outras línguas, este sentimento que desde sempre foi tão meu. Agora posso por uma cara feliz e explicar a este povo galego que, não importa onde esteja, hei sempre de ter “morriña” de alguém. Afinal morriña também pode ser uma coisa boa!

Falsos Amigos II

Estávamos em ritmos “de copas”, de bar em bar, quais saltimbancos femininos. A história surge num entrelaçar de vozes roucas. Era um amigo que tinha sobrevivido heroicamente a uma doença fatal.
- Uau, que historia espantosa - comento
Silencio. Olhos pensativos.
Marina acha por bem reforçar a afirmação para quebrar o repentino sossego:
- Realmente espantoso…
Poderia ter sido admirável, extraordinário, maravilhoso, incrível, mas não, entre copos de licor de café, a história parecia-me verdadeiramente espantosa.
Até que há alguém que se adianta.
- Pois eu não acho espantoso. Parece-me um rapaz muito forte e até heróico.
Todas soltam gritos de concordância e a conversa segue para se evitar o assunto.
Horas mais tarde, muitos licores de café depois e sem mais nenhum silencio registado, resolvo perguntar, já temendo a resposta.
- O que significa “espantoso”?
- Horrível – disse.
Gargalhei sozinha alguns minutos. Gargalhei acompanhada outros tantos. E o falso amigo valeu-me mais um licor de café.
“Ás histórias espantosas e exquisitas” foi o brinde proposto. Pareceu-me bem.

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