Dizemos que somos miúdos modernos, independentes e autosuficientes. Que o amor é um mito. Dizemos que só queremos diversão, umas quantas risadas e umas cervejas na mesa do bar. Que paixão é coisa de cinema. Gritamos e acreditamos que não há cá mi-mi-mi-mi nem mu-mu-um. Gosto de ti, pah!. Proclamamos que não há paciência para namoros grude. Relações de sexta-sabado-e-domingo. Não há cá trelas nem ataturas. Fora os telefonemas de boa noite e as mensagens de todos os dias. Somos modernos. Primeiro eu e depois tu. Primeiro eu e, se não chateares muito, quem sabe, depois tu. Mas há um dia em que há um corte mais brusco, uma resposta atravessada ou um egoísmo que, simplesmente, chama a atenção. E então pensamos: para quê tanto modernismo se, no fundo, somos todos uns românticos reprimidos. Blergh.
É inconsciente. Mas uma das primeiras coisas que faço quando conheço alguém potencialmente interessante é aplicar-lhe o teste dos “periódicos”.
A premissa é fácil e quase irresistível: um café numa manhã/tarde de domingo. Então lá vamos nós. Café com leite, chazinho ou chocolates com churros. “Ah, vou só buscar o jornal”. O esperado jornal de domingo. E de repente somos 3 à mesa. O dito periódico ganha protagonismo e começa o teste. Quero ver o à vontade que tem com aquelas folhas que sujam os dedos, quero saber o que opina ou porque não opina, quero ouvir os seus comentários, conhecer a profundidade das suas ideias, entender os seus interesses. Então leio em voz alta, cito, discuto. São incontáveis as vezes que fechei o jornal na pagina três e voltei aos nossos temas de conversa quotidianos, são incontáveis as vezes que recebi aquela olhar de estamos-aqui-os-dois-e-vais-ler-o-jornal?. Incontáveis. Mas eu não desisto. Porque de vez em quando lá aparece alguém que nos surpreende. E os domingos passam a ter toda uma nova dimensão.
Até que chega um dia que ficas doente. Vomitas no bar, no táxi e na sanita da tua casa de banho. Enjoa-te dormir, levantar, caminhar e descansar. A barriga sai pela boca e o mundo anda às voltas. Até que chega o dia em que, depois de meses de afirmações independentistas e emancipadas, entre um vómito e outro pensas: como queria ter alguém. Alguém que te segurasse o cabelo, que te limpasse a boca e te pusesse toalhinhas na testa. Alguém que te desse um remédio, te fizesse a comida e te dissesse que tudo ia acabar bem.
Mas não. Então no dia seguinte te levantas e tentas limpar a casa de banho, mas vendo que não tens forças, pensas: “preciso melhorar”. Na falta de uma mãe perto, visitas o Google que te diz o que podes comer nesse estado. Tapas o pijama com um casaco até aos pés e directamente para o supermercado. Então comes meia maçã e juntas energia para rectificar o desastre da noite anterior. Depois, um frango com arroz e cama. Rebolar na cama de mão na barriga e Google outra vez. Agora para procurar onde fica o hospital mais próximo e, just in case, deixas anotada a morada ao lado da cama. No dia seguinte acordas com vontade de ler o jornal e isso é sintoma de que o mundo voltou à normalidade. Quer dizer, quase tudo voltou ao normal, porque houve uma ideia que continuou a andar às voltas na tua cabeça: se calhar já é altura de ter alguém.
Desde que vivo na Galiza há um tema que me incomoda especialmente: os nomes. Aqui há aquele sentimento de “manter viva a tradição” e é cool, moderno, super in, pôr nas crianças nomes, hmmm, tradicionais. E não necessariamente galegos.
Então andamos pela rua e escutamos, “Gadea, vem aqui”. Claro que nesse momento pensamos em gado, mas não dizemos nada. Depois há a Águeda (que parece que é um rio português) e o Bieito (que para mim é nome de padre). E, claro, é impossível evitar a situação do “Como se vai chamar a tua filha?” E respondem-te “Mencia” e tu só pensas em melancia, mas dizes “Ah, que bonito”. Nos rapazes o mais comum é o Brais, que tem nome de bacalhau, mas outro dia conheci um Uxio, e parece que tamos sempre a mandá-lo calar (shhiiuuuu). Conheço também um Senén e un Efrén e eu, obviamente, confundo-os. Iria para mim parece nome de remédio e Icíar não vale porque é difícil de pronunciar. Depois há um que eu tenho uma implicância especial e a primeira vez que ouvi fiz a rapariga repetir o seu nome umas 100 vezes. Agora imaginem a situação: estão grávidos, o bebá nasce, vocês olham para ele e dizem, “que linda menina, tem mesmo cara de Covadonga”. Sim, meus amigos, garanto-vos que é um nome muito comum por estas bandas. Cova-Donga. Chamem-me tradicional, mente fechada, conservadora, o que quiserem. Mas acho que nunca vou ser capaz de superar o trauma dos nomes.
Um dia chego ao trabalho, sento-me em frente ao computador e dizem-me: hoje a tua notícia é sobre a crise da esquerda, o conflito de Tunes, a bancarizaçao das caixas ou a subida da luz. Então paro, respiro fundo, e começo a pesquisar. Um pormenor aqui, uma última hora ali, um contexto e até uma opinião. De repente, já sou dona daquela notícia. Já domino o tema, já sei tudo de trás para a frente e agora falta contar. Então escrevo, apago e volto a escrever. Penso na minha avó, naquela rapariga que conheci no supermercado, na senhora do banco e no opinólogo que amanhã vai querer tirar satisfações. Penso que todos têm de entender, que dependem de mim para estar informados. Que eu, esta pessoazinha insignificante que vai sair daqui e ir beber um cerveja com uns amigos, esse ser fútil e supérfluo; eu, euzinha, que há três anos estava na universidade; eu sou a dona daquela informação e eles dependem de mim para entende-la, para analisa-la e para aprofundar o que já sabem. E nesses momentos pergunto-me: há alguma profissão melhor que esta?
Eu nunca fui uma menina princesa. Sempre fui alta demais e desengonçada demais. Sempre cuspi demais (dez anos de aparelho, meus caros) e bati demais (sim, eu era daquelas miúdas que batia nos rapazes na escola). Sempre fui reivindicativa demais, sempre li demais e pensei demais. Mas durante anos sentir essa pressão sobre mim. A pressão de ser uma menina princesa. Então punha vestidos com laçarotes nas ocasiões especiais, tentava falar baixo e conter os gestos extravagantes. Nunca funcionava. Acabava sempre com as cuecas à mostra, com a bandelete no sítio errado, o cabelo despenteado e afónica de tanto gritar. Voltava para casa feliz, mas triste. Porque sempre falhava esse meu grande objectivo. O tempo foi passando e fui conhecendo grandes exemplares dessa espécie de garotinhas. Olhava-as com admiração e suspirava. Eram meiguinhas, tímidas, delicadas e femininas. “Filha, tens de aprender a ser mais feminina”, diziam-me em casa. E eu voltava a suspirar. Demorei muitos anos e muitos suspiros para assumir que eu não gosto de lacinhos, florinhas, desenhinhos ou tons pastel. Não suporto rendinha, saiinha e sapatinhos de boneca. Não há cá ganchinhos para o cabelo, nem pulseirinhas com penduricalhos, nem bandeletes com florzinha. Adoro ténis, tecidos lisos, calças de gangas e roupa larga. Sim, sou chegada numa roupa larga. Adoro mochilas, bolsas grandes, casacos compridos. Não uso maquilhagem para sair à noite. (Quase) não uso brincos, colares, anéis. Demorei muitos anos para chegar até aqui, mas agora, finalmente, posso dizer: Eu não sou uma menina princesa. Porque (espanto dos espantos!) nem todas as meninas têm de ser princesas.
Desde que sai de casa de papá e mamã descobri o meu não-gosto por cozinhar e, consequentemente, identifiquei-me com as lojas de comida pronta, as tostas, as saladas e os restaurantes. Passei a discutir a subida do preço da luz e os descontos dos supermercados. Comecei a sujar menos, para limpar menos. Parei de usar lençóis (outra invenção para fadas do lar) e eduquei-me no desapego material.
Para mim viver sozinha significa desfazer mitos.