Venga

A primeira vez que me pus a pensar nestas coisas foi na temporada que vivi no Brasil. Estava a fazer uma entrevista por telefone e chegou aquela hora desconfortável da despedida formal. Eu com o meu português camuflado de sotaque brasileiro digo em jeito de despedida:
- Obrigada pela ajuda, com licença.
Nesse exacto momento estava um amigo a passar e comenta:
- Cortou-se a ligação?
- Não, porquê?
- Desligaste-lhe o telefone na cara…
Demorei algum tempo a perceber que possivelmente o meu entrevistado ficou do outro lado da linha à espera que eu lhe dissesse porque é que lhe estava a pedir licença.
- Era eu a avisar-lhe que ia desligar o telefone – aclarei. O meu amigo olhou para mim com cara de E.T, murmurou algo como “ai estes lusos” e foi-se embora.
Ao chegar a Espanha percebi como os rituais telefónicos reflectem muito a personalidade de cada país.
Em Portugal pedimos licença para desligar o telefone, no Brasil desejamos ao nosso interlocutor um “resto de um bom dia” e em Espanha… pois ai entra outra história.
A primeira vez que o escutei, deu-me um no na cabeça. Tinha chegado há dois dias a Espanha e uma senhora diz-me:
-Venga, tchau, hasta luego…
Fui ver ao dicionário e confirmei a minha suspeita: “Venga”, em português significa “venha”. Mas ela está a chamar-me para ir a algum lado?, perguntei-me. Na dúvida, decidi ficar calada.
Foi então que percebi que, assim como um uma conversa informal os portugueses dizem “vá, adeus”, em espanhol diz-se “venha”. Deve ser porque o português quer sempre que o outro se vá embora e o espanhol está sempre disposto a que venham, conclui. Por via das dúvidas, prefiro o “venha”. E que sejam todos bem-vindos.

Best-seller

Escolhi-o como companhia para uma longa viagem de comboio. Ao princípio estava tensa. Não conseguia parar de pensar na técnica, nas palavras-chave do suspense. Mas como em todos os primeiros encontros, a desconfiança foi-se embora depois dos primeiros sorrisos cúmplices. Acabamos por ficar dois dias, animadamente, a conversar. Ao terceiro apercebi-me que já o considerava da família. Por mais estranho que pareça, não lhe havia escrito nenhuma anotação, marcado as histórias de especial interesse ou tirado os olhos dele para, por uns minutos, dedicar-me a pensar no que me tinha acabado de me contar. Tinham sido horas de conversa fútil e ligeira. Ele contava-me a sua história e eu, amorfa, absorvia-a sem contestar. Só lhe pedia que falasse mais, cada vez mais.
Foi um choque. Estava habituada aos namoros de cabeceira e às minhas infinitas técnicas e manias que tinha desenvolvido para os enrolar, arranjar desculpas que os atrasassem, que os fizessem mais lentos, só para que ficassem mais tempo comigo. Aqui tudo foi radicalmente diferente. O meu único desejo era ouvi-lo, que me contasse, de uma vez por todas, tudo o que sabia e que no final se fosse embora e me deixasse viver a minha ressaca narrativa sozinha.
Não era, definitivamente, o amor da minha vida. Mas pelo menos serviu para me lembrar que os namoros de verão também têm a sua graça.

* Stieg Larsson - Os homens que nao amavam as mulheres

A Piauí é um dos meus pequenos prazeres de fim-de-semana. Aproveito para recomendar a revista e contar-vos que este mês, além das horas e horas de leituras-suspiro, diverti-me especialmente com os cartoons de Reinaldo Figueiredo.
"Não. Eu sou o NADA. O SER disse que vinha. Deve estar chegando."

Alas Solidarias

Tudo começou com uma pergunta inocente: “Marina, gostas de voar?”
O resto é a história de um piloto que “há muito tempo não andava nisto”, um fotógrafo que já tinha voado “num assim parecido” umas “quatro ou cinco vezes este ano” e uma aprendiz de jornalista que ainda era virgem nessas andanças.
O piloto comunicou com a torre de controlo e o fotógrafo aproveitou para ligar à sua mãe, “se acontecer alguma coisa já sabes que te amo”. A jornalista mirim lembrou-se nesse momento que não havia ninguém em Espanha que tivesse o contacto da sua família e anotou a informação no seu Moleskin.
- O mais difícil é a descolagem - disseram. E a estagiaria agarrou-se ao cinto de segurança como se verdadeiramente acreditasse que ele a salvaria.
“’Tas bem?”, perguntou o fotógrafo em tom de rotina. A jornalista bem quis responder, mas o seu microfone não funcionava. No céu só se pode falar por auriculares, concluiu.
Então passaram por Portugal e sobrevoaram as ilhas Cies. “Os turistas sempre adoram esta parte, porque depois de lá estar percebem como as ilhas são diferentes desde cima”. A jornalista não comentou e quis tirar o seu caderninho para anotar algo como: “Urgente: Ir às Cies”, mas nesse momento os seus pés saíram do chão, que é como quem diz, voou dentro de um avião. Era o piloto boa pinta a meter-se com a virgenzinha. “Gostas de emoção?” E ela ria-se, como costuma fazer em momentos de nervosismo. Mas foi o fotógrafo que sentenciou à morte esta diversão aérea dizendo que estava enjoado, que, curiosamente, em espanhol diz-se mareado, mesmo que o mar esteja centenas de metros abaixo dos teus pés.
A aterragem foi silenciosa. O piloto prometeu uma próxima aventura “com mais manobras”, o fotógrafo queixou-se do seu estômago e a jornalista tentou pensar nas perguntas que queria fazer sobre aquela ong que transportava crianças de Gaza para serem operadas em Madrid, mas só conseguia rir-se. Só que desta vez já lhe tinha passado o nervosismo.

A gargalhada do dia

Já que estão sempre a dizer que eu não tenho sentido de humor, achei que seria de bom tom partilhar convosco as minhas duas últimas (pequenas) gargalhadas que, surpreendentemente, estiveram relacionadas com a mesma "noticia":

Há uns dias vi a foto e fiz um barulhinho a rir-me.


Mas hoje encontrei o vídeo e não resisti. 'Cause that's what I love about politics.

Frase do dia

"No es limpio el que más limpia, sino el que menos macha"

Uma eterna carta de amor

As primeiras memórias que tenho tuas são de quando eu ainda era uma anãzinha e conseguia juntar dinheiro suficiente no meu mealheiro para poder, por fim, chegar à fila do bar e pedir cem escudos de ti. Quem diria que naqueles saquinhos começava uma linda historia de amor
Mas crescer é difícil e logo depois veio aquela fase em que “comprar coisas no bar da escola é só para crianças”. Tu ficaste triste, nunca me vou esquecer, mas lembras-te quando descobrimos as lojinhas dos cinemas? Eu saia com os meus pais e conseguia sempre convence-los a trocar as minhas pipocas doces por um pacote cheiinho de ti. Namorávamos todo o filme. Memórias de adolescentes irresponsáveis.
Mas a fase de ir ao cinema com os pais passou rápido e então apareceram os amigos. Houve aquele festa surpresa inesquecível em que eles deram-me um caixote cheio de presentes e, para acomodar as coisinhas na caixa, quem apareceu? Eras tu em forma de milhares de sacos de amoras coloridas. Dias de paraíso. Dai em diante, tu tornaste-te o trunfo perfeito para todo o tipo de ocasiões. E os meus amigos nunca se deixavam de surpreender pela minha felicidade histérica ao ver-te. Acho que, no fundo, invejavam o nosso amor.
E lembras-te quando tive aquele namorado que caiu no erro de criar uma rotina de presentes (tu, em milhares de saquinhos) que quase o levou à falência? Nós gozávamos com ele e ele com a nossa rapidez de esvaziar aqueles sacos de animaizinhos coloridos sem nunca ter dores de barriga. Bons dias esses.
Mas como em todas as relações, meu amor, a nossa também esteve longe de ser perfeita. Houve o dia em que chegou aquela maldita “vaca louca” que nos separou durante um ano inteiro. Quase entrei em depressão, tu sabes bem. Mas também não posso deixar de mencionar aqueles (vergonhosos) seis meses em que eu tive um pequeno deslize. Desculpa estar a trazer isto à baila outra vez, mas quero que a nossa relação se baseie na verdade, meu amor. Sim, eu troquei-te por potes de chocolate de barrar no pão. Pronto, já disse. Mas como todas as crises, as nossas também foram passageiras. Não é preciso grande sabedoria para descobrir que o verdadeiro amor dura para sempre. E o nosso, sem dúvida, pertence a esse grupo.
Agora, nesta minha vida de eu-trabalho-seis-dias-por-semana, és tu a única coisa que me conforta. Saber que quando o texto encrava posso levantar-me da minha cadeira, descer as escadas e ir até à máquina namorar um pouco contigo.
Mas escrevo-te porque agora estamos em crise. Ambos sabemos que para que a nossa relação resulte, tenho de conseguir ganhar-te.
Porque as gomas, para saberem a gomas, têm de ser oferecidas com um sorriso maroto e comidas com ar de criança traquina de dentes cariados.
Quem será o nosso próximo alvo, meu amor?

Descalça pela vida

Assim como quase todas as meninas, eu também cresci a achar que um dia iria encontrar um príncipe com um cavalo branco, que viveríamos num castelo e falaríamos a cantar.
Mas depois uma pessoa vai tropeçando pelo caminho e a vida vai deitando tudo ao ar. Descobrimos dolorosamente que os animais não falam, que a comida imaginária não alimenta, que os homens, ai os homens, nunca são tão perfeitos como gostaríamos. E até há aquele dia memorável em que nos dizem que os cavalos não podem andar na autoestrada.
Mas as lentes cor de rosa dos livros coloridos da infância são muito resistentes e há sempre qualquer coisa que fica, uma réstia de crença absurda e infantil na salvação e no amor eterno que não se dissolve na espuma de todos os dias, que dura no meio dos gritos, do mau humor, das noites mal dormidas, do fim do mês sem dinheiro e do trânsito parado.
Acreditamos porque queremos e também porque não suportamos não acreditar. O tempo passa e mal sabemos que tudo já se tornou impossível, que ao longo dos anos e das desilusões o que ficou foi a parte prática e não a romântica. Que o que nos mantém unidos ao amor é a certeza de que estaremos sempre melhor acompanhados do que sozinhos, descalços pela vida.
Há uns tempos atrás tirei os sapatos e as pedras da calçada fizeram-me feridas nos pés. Agora que os meus dedos começam a ganhar calos eu pergunto-me se isso será bom ou mau.

Esse cheirinho tão gostoso

O objectivo era simples: fazer uma reportagem sobre o “amanhecer” de um porto.
Problemas:
- O porto “amanhece" ainda de noite
- Às 5 da manhã não fui capaz de encontrar umas calças que não arrastassem no chão enquanto caminhava.
- De manhã, o cheiro intenso a peixe enjoa.
- Uma reportagem completa implica que também presencies o “tratamento de resíduos” do porto. Neste caso, poupo-vos dos pormenores descritivos sobre o cheiro.
- Quatro horas depois, ou seja, as 9 da manha, cheguei a redacção e a luz ainda estava apagada.
- O meu companheiro do lado teve o dia todo a queixar-se do meu cheiro. Parece que as minhas calças fizeram, uma vez mais, o favor de absorver o perfume da lota.

Resultado:
- Duas páginas de jornal só pra mim.
- Uma crónica a dizer mal (assim em tom de gozo, vá…) da Presidente do porto.
- Um “está de puta madre el reportaje” vindo da minha chefe.
e…
- A “feliz” ideia de propor uma segunda reportagem sobre o porto, mais propriamente, sobre o centro de tratamento de resíduos. “Genial marina, adorei a ideia”. Prendi a respiração e liguei para os responsáveis. Visita marcada para amanha de manhã.

Pergunta do dia:
“Mas o que se passa contigo? Tens um problema ou no fundo gostaste do cheiro?”

Decisão:
- Amanhã vou de calças curtas (e velhas).
- Esta noite treinarei novas técnicas para prender a respiração.

O "élhdgê"

Há um som na língua espanhola com que vou travar para sempre uma dura batalha. Escreve-se “ll” e se um dia vos disserem que correspondem ao nosso “lh”, fujam, porque essa pessoa está a tentar enganar-vos.
Pois eu explico:
Depois de nove meses de expedição do mundo espanhol concluí que o “élhê”, como eles chamam, é um som que vive a meio caminho entre o “lhe” e o “ge”. Construiu a sua casinha num fonema que eu traduziria como “lhdge”. A pior parte desta batalha (e que me faz pensar que, à partida, já está perdida) é que os meus ilustres professores, que é como quem diz, os espanhóis, ainda não se decidiram sobre qual deve ser a sua correcta pronuncia. Para dizer chaves pronunciam indiferentemente “lhaves”, “jávez” ou “lhdjáves” o que faz com que o meu cérebro dê um nó cada vez que tenho que dizer uma palavra que começa por essa maldita “consoante”.
Mas como o destino gosta de se rir de mim quando está aborrecido colocou como meu companheiro de mesa de trabalho um senhor que se chama, nem mais nem menos, “Llera”. Estive um mês a inventar malabarismos lexicais para que não ter de chama-lo pelo nome. Ontem, quando achei que já o tinha treinado vezes suficientes em casa e que já sabia pronunciar a dita palavra, chamei-o e ele não olhou. “Desculpa, é que não percebi que me tavas a chamar a mim”, disse-me sublinhando o “mim”.
Hoje contaram-me que ele foi de férias e que só voltará daqui a um mês. Parece que tenho várias semanas para continuar treinando. Ou, quem sabe, para encontrar-lhe uma boa alcunha.
Sugestões?

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