Inferno Astral

Há verdades que nunca contestamos. Se desde criança nos dizem que um mês antes do nosso aniversário os astros se unem para nos enviar energias negativas, nós acreditamos.
Se nos explicam que a culpa de tudo de errado que se passa nesses 30 dias é dos céus, sentimo-nos confortados.
E se nos justificam que quando esse mês nos corre bem é porque fomos fortes o suficiente para combater os astros, nós ficamos orgulhosos das nossas capacidades.
Então perguntamos se o inferno astral pode enganar-se e chegar fora da data prevista.
Dizem-nos que “os astros são capazes de qualquer coisa” e nós sorrimos e lembramo-nos que essa foi a primeira razão que nos levou a acreditar neles.

Voltou.

Hoje encontrei a caixa dos meus óculos e fui à praia sem protector solar.
Li o jornal de pé enterrado da areia e usei as minhas sandálias ortopédicas.
São nove da noite e os meus olhos começam a fechar de sono.
Sinto que a vida está a voltar à normalidade.

O Dia do Orgulho Friki

Gostam de ficção científica, de banda desenhada e não resistem a desenhos animados japoneses. Sabem tudo e mais alguma coisa sobre filmes de série B e o seu sonho era ser um super herói. Chamam-se “frikis” e amanhã estão de parabéns.
Toda a gente sabe que eu sempre tive um fraquinho por esta “espécie humana”, talvez por, à minha maneira, também ter o meu quê friki. Fascinam-me as fofocas e teorias da conspiração sobre realidades que não existem, irrito-me quando se diz que BD é coisa de crianças e divirto-me com os filmes de terror do Fantasporto...
Mas tudo isto porque amanhã celebra-se em Espanha o Dia do Orgulho Friki, com o lema “Se não é este mundo, dominaremos outros”. A data foi escolhida por conjugar duas efemérides importantes: a estreia do primeiro filme da saga Star Wars (1997) e o dia da morte de Douglas Adams (2001), autor do livro À Boleia pela Galáxia.
Mas se estão a achar todo este post uma “frikalhada”, esperem pela informação que se segue:
Estive a ler sobre as comemorações do 25 de Maio e descobri que em Inglaterra o dia é celebrado como o Dia da Toalha, que consiste, basicamente, em sair à rua com uma toalha às costas. O que pode parecer um absurdo, é apenas uma forma que encontraram de homenagear Douglas Adams, que ensinou nos seus livros que ninguém deveria sair a rua sem este objecto porque “é o mais valioso quando se quer sobreviver aos perigos de uma Galáxia desconhecida”. O autor explica que a toalha pode servir como:
- Cobertor ou casaco
- Bandeira
- Reforço psicológico (“é como um amigo”)
- Arma (“um golpe bem dado com uma toalha molhada pode arrasar um inimigo hostil”)
- Vela de um barco
- Esconderijo
E, por fim,
- Para secar-se (“é o uso mais normal que acaba por eclipsar os outros e condenar as toalhas aos armários da casa de banho”, explica Adams).

E vocês? Como vão comemorar esse dia?

Desabafos de uma jornalista frustrada

O limite do jornalismo revela-se no dia em que um entrevistado pergunta-nos:
- Mas isto é grátis, não é? Ou tenho de pagar alguma coisa para que me publique esta informação?

Tuteando

Hoje, enquanto um professor tentava convencer-nos de que a monarquia era o melhor sistema político para Espanha, ele disse uma frase que alterou toda a minha perspectiva de vida em Espanha:
- O Rei tem um estatuto que lhe permite tratar por tu a todas as pessoas do mundo. Com a excepção do Papa, a quem tem de tratar por Vossa Santidade.

A frase lembrou-me do meu “pequeno probleminha idiomático”: é que eu não sei conjugar muito bem os verbos em “usted” e então já há algum tempo decidi que trato toda a gente por tu aqui em Espanha.
A grande diferença e que eu antes dava como desculpa que “ah sou estrangeira e tal” e agora vou passar a dizer: Sou o Rei de Espanha.
Só espero que um dia não tenha de entrevistar o Papa. Porque nesse caso vou ter de lhe dizer que o Papa sou eu!

Deskippelização

Hoje li um artigo que dizia que “a erradicação do kippel” era como a solução milagrosa para salvar o mundo.
O kippel são todos aqueles apontamentos da faculdade que nunca colocámos a reciclar, aquele livro que detestámos e que o mantemos na estante a apanhar pó, aquelas camisola que a nossa tia nos ofereceu há cinco anos e que nunca usámos. São todos aqueles objectos que compramos e terminam esquecido no fundo gaveta.
Pus-me então a pensar nos kippels da minha vida. Aquele email guardado que nunca cheguei a responder, o insulto que abafei e o beijinho que sempre quis dar.
Lembrei-me dos amigos em quem penso tanto, mas com quem nunca falo, naquele texto que quero “um dia escrever” e nos sonhos que nunca cheguei a realizar. Listei tudo isso e somei as horas da minha vida que já desperdicei a pensar no que "tenho de fazer", sem nunca colocar nada em prática. E foi por isso que declarei esta semana como a Semana Oficial de Deskippelização da minha vida.
Alguém alinha?

Técnicas de controlo

Em espanhol as línguas não se sabem, “controlam-se”.
Assim como um namorado possessivo que quer saber onde estávamos quando não lhe atendemos o telefone, assim como o panóptico e as doenças crónicas. Assim como a respiração nas aulas de ioga.
Queremos que o idioma nos explique porque se usa esta preposição e não a outra, porque se chama aos calções “calças curtas” e para os casacos inventaram dez palavras distintas, porque o jota tem som de érre e o duplo éle som de jota… Exigimos respostas, queremos controlar todos os seus movimentos e nuances, mas o raio da língua tem a mania da liberdade e foge-nos pelos dedos, qual menina independente.
Ultimamente têm me dito muito que já só me falta "controlar" um pouquinho mais o espanhol. E sempre que isso se passa, dou comigo a pensar em técnicas de tortura fascista.
Quem sabe funcione…

Eveneme… quê?

Desde que cheguei a Espanha que me lembro muito de um episódio que se passou nas emblemáticas aulas de Teoria do Texto.
A professora falava, como quem comenta o novo corte de cabelo da vizinha, sobre a ligação da escrita e da oralidade e sublinhava a necessidade da “problematização da evenemencialidade da escrita” na sociedade moderna.
Foi então que no fundo suege uma voz que pergunta no idioma internacional dos erasmus:
- Desculpe, mas pode repetir a frase?
A professora, encarnada por um espírito de caridade sem fronteiras responde à erasmus:
- E-ve-ne-men-ci-a-li-da-de da escrita. É normal que não conheças a palavra, é um galicismo que gosto de usar.
A atenção da sala voltou-se para a rapariga que, nesse momento, olhava para os outros alunos em busca que uma reposta que tivesse, pelo menos, una palavra que constasse no seu dicionário de bolso.
A professora, já no seu estado mais puro de solidariedade para com as minorias internacionais, esclarece, com um tom de voz maternal:
- Evenemencialidade discursiva significa a acontecimentalidade de um discurso.
É então que a rapariga atira a caneta para cima de mesa e pergunta numa última tentativa desesperada de sobrevivência:
- Aconteci… quê?
A turma riu-se e prometeu passar-lhe os apontamentos no final do ano. A erasmus nunca mais voltou a assistir às aulas.

Gostava que o mundo real fosse uma eterna aula de Teoria do Texto e que eu pudesse um dia atirar a caneta ao chão e dizer aos assessores de imprensa que escrevem os comunicados políticos (em galego): “Eveneme… quê?”

O sistema mediatico

Ele chegou apenas com uma folha de papel. Não ligou o computador, nem perguntou o nosso nome. Danem-se essas modernices da interactividade! Não olhou ninguém nos olhos, não fez sorriso de boas vindas.
Apenas sentou-se e começou a falar.
Durante quatro horas discorreu sobre o sistema uninominal, a pluralidade, a ideologia e o conceito. E eu escrevi páginas e páginas de saber copiado em letras rápidas e arrastadas, enquanto o resto da turma fazia desenhos no caderno e enviava-me bilhetes em busca de conversas paralelas.
No final, deu-nos oito minutos para fazer-se perguntas. Fez-se uma e o tempo acabou.
Sentada na primeira fila, larguei a caneta e alonguei os dedos cansados. Ele fechou a porta e não olhou para trás.
E enquanto guardava os meus apontamentos no dossier dividido por cores, deixei escapar um pequeno suspiro. Porque durante quatro horas voltei ao passado. Àquele tempo em que a vida eram viagens de comboio de dossier na mão. Um dossier que cada dia pesava algumas folhas a mais.

As dez razões pelas quais ultimamente tenho pensado muito no Nietzsche...

«O que não te mata torna-te mais forte.»

«Ser independente é coisa de uma pequena minoria, é o privilégio dos fortes.»

«Não há razão para procurar o sofrimento, mas se este chega e trata de meter-se em tua vida, não temas; olha-o na cara e com a testa bem levantada.»

«Sem música a vida seria um erro.»

«O mundo real é muito menor que o mundo da imaginação.»

«Quando se tem muitas coisas para meter nele, o dia tem cem bolsos.»

«O homem sofre tão terrivelmente no mundo que se viu obrigado a inventar o riso.»

«Apenas aquele que constrói o futuro tem direito a julgar o passado.»

«O que me preocupa não e que me tenhas mentido, mas que, de agora em diante, já não possa acreditar em ti.»

«No amor sempre há algo de loucura, mas na loucura sempre há algo de razão.»

17 anos depois.

Esta é a história de uma família que um dia cantou ao telefone: “É uma casa portuguesa com certeza” e para Portugal se mudou. De uma mãe que disse, “na minha casa não entra esse sotaque” e de um pai que andou num exercito de paredes cor-de-rosa.
Por ali cresceram dois irmãos que gravavam telejornais para não se aborrecer nas viagens, que eram repreendidos pelas professoras por dizer “à” e não “â” e que nunca comeram sopa à refeição.
Naquela família houve um cão chamado Moby Dick, um hamster Godofredo e umas tartarugas que são do tempo em que o Tom Cruise ainda não tinha descoberto a religião da ciência.
Ali vive a filha que habitou um armário e o filho que pôs cola no cabelo. A mãe secretária, professora e, recentemente, artista e o pai que, dizem, escreverá um livro.
Mas a família foi crescendo e cantando outras canções. Criaram um estilo luso-espanholo-brasileiro e recentemente anunciaram que incorporarão também uns ritmos americanos, daqueles que surgiram nos ambientes académicos tradicionais.
Os anos passaram e agora ao pai dói-lhe um joelho e à mãe o dedinho do pé. Descobriu-se que a filha foi um erro genético e que o filho, dizem, ganhará o prémio Nobel.
Diz-se por aí que falam alto, que têm um humor peculiar e que nunca chegarão a um consenso sobre o acordo ortográfico.
Mas que, apesar do seu novo estilo musical, continuam, todos os anos, celebrando o 7 de Maio, o dia em que o destino decidiu que para aquela família, de aptidões musicais nulas, a música tornar-se-ia uma realidade.
“…É com certeza uma casa portuguesa”.

Lar doce lar

Há os amigos com quem é bom sair para beber um copo. Os amigos a quem gostas de pagar um copo e os amigos com quem acabas sempre por beber mais de um copo.
Há os amigos a quem assenta bem uma tarde de silêncio a ouvir o mar e aqueles que combinam com discotecas e músicas electrónicas. Amigos com quem partilhamos o nosso mp3 e outros que preferem arriscar-se numas noites de karaoke gritado.
Há uns amigos que gostam de cinema, outros de música e outros que simplesmente não gostam. De nada.
Existem aqueles que ficaram célebres por aquela piada bem metida, os que engoliram no exacto momento a lágrima que queria sair e os que choraram e riram no nosso ombro multiusos.
Os amigos podem levar-se no bolso do casaco, na mensagem do telemóvel, no comentário cibernético ou no postal pendurado na parede. E há também aqueles, mais humildes, que se contentam com o peso leve de um pensamento. Bons amigos, esses.
Há amigos de fotografia e amigos de carne e osso. Há amigos que são só memórias e outros que nos dão abraços inesperados. Não há que esquecer daquele amigo perpétuo que não sabemos muito bem porque lhe continuamos a chamar assim.
Há amigos a quem pedimos, outros a quem convidamos e ainda aqueles a quem exigimos. Amigos que nos atam, que nos soltam, que nos revelam. Amigos que têm gosto de gelado de praia, de scone com compota, de croissant com chocolate ou de chá de maçã.
E depois, bem depois, nessa lista interminável, há aqueles amigos com quem nos sentimos em casa.

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