A lotaria

Desde pequena que vejo o meu pai jogar na lotaria.
- Pai, posso jogar também? Deixas-me escolher um número?
- Podes jogar filha, mas tem de ser uma cartela tua.
E a minha mãe acrescentava:
- O teu pai joga sempre os mesmo números!
Ver o meu pai jogar na lotaria não tinha muita piada. Ele passava os talões antigos ao senhor da casa lotérica que somava o dinheiro que tinha ganho no mês anterio. Depois disso o empregado perguntava-lhe:
- São os mesmos números?
Com um abanar da cabeça e um desembolsar de alguns euros a operação estava feita. Sem risquinhos nem macumbas, sem pedir opiniões ou franzir qualquer músculo. Era uma operação cirúrgica.

Um dia resolvi perguntar-lhe porque é que ele insistia no jogo se não lhe dava nenhum prazer. Descobri que o meu pai joga na lotaria “desde que a minha mãe o conhece” pelo simples facto de que, se parar de jogar nunca poderá ter a hipótese de ganhar.
- Ambicioso – pensei.
Mas descobri que a lotaria era muito mais do que uma ambição. Naqueles dias em que tudo corre mal e apetece dar um tiro no patrão, o meu pai pensava “quando ganhar a lotaria despeço-o”. Quando o elevador encrava e a mesa da cozinha partia, ele pensava “quando ganhar o lotaria vou comprar uma casa nova”. Não era uma atitude pacífica em relação aos problemas. Era um escape. O chamado “sonho que move a vida”.

Há uns meses o meu pai deixou de jogar na lotaria. E eu, por dentro, entristeci.
E é por isso que eu continuo a mandar currículos para vagas de “BBC Reporter” e “Head of communications da Google”. Porque naqueles dias em que não há saída visível, posso pensar: “Quando me ligarem a dizer que fiquei com a vaga, mando-os todos à merda”.

O gajo é bom, pá

Não há nada mais triste para a humanidade do que descobrir que preferimos ir para a guerra com um traidor do que com um tolo.
Ir para a guerra com um tolo é como lutar sozinho. Tens lá o tolo a tolar a toda a hora, a sorrir e a executar defeituosamente as tuas ordens. O tolo não vale na guerra, porque se tiver de ser ele a dar o tiro final, vai errar o alvo e começar a chorar. E lá vais de ter de ir tu consola-lo, ao invés de lhe dar o merecido par de estalos. Os tolos não ganham, nunca. São aqueles sonsos que acham que “o importante é saber ouvir”. Eu digo que o importante é saber falar. Acertivamente.
É triste que a escolha mais adequada seja o traidor. E que quando nos colocarem contra a parede e nos disserem: “mas afinal porque é que escolheste este tipo sem escrúpulos?”
Tenhamos de responder: “O gajo é bom, pá”.
Mmmmm, que dizer, com a devida margem de erro.

O sexo dos anjos

Conheço uma pessoa que tem um amigo imaginário. Chama-se Afonso e morreu de cirrose.
Eu também tenho uma amiga imaginária. Chama-se Inês e morreu num acidente de carro.
Eu nunca tinha conversado muito com ela. Mas invejava os seus cabelos louros, lambidos e cheios de madeixas. Ela tinha um namorado. Era o Francisco.
Também invejava isso nela. Eu andava sempre a correr atrás dos rapazes. Batia-lhes quando eles me levantavam a saia e, uma vez, quando um menino me mandou uma cartinha de amor, fiquei tão nervosa que parti o aparelho dos dentes.
Ela não. Andava para lá e para cá de mãos dadas com o Francisco. No dia dos namorados casaram-se. E o bouquet era um chupa-chupa de coração.
Um dia a Inês e a família foram viajar. Chegou a uma altura da viagem que o pai, que conduzia, ficou cansado. Resolveu parar o carro para dormir um pouco. Ninguém deu por nada. De repente, bum.
A mãe, gravemente ferida, quando soube que a filha não tinha resistido ao embate, deixou-se ir também. O pai prometeu cuidar do filho mais velho que, por sorte, estava do outro lado do carro.
Quando voltámos das férias só se falava nisso. Disseram-me que ela tinha morrido porque estava a dormir quando o acidente aconteceu. E foi por isso que, durante muitos anos, não consegui dormir em viagens de carro.
Agora durmo. E sonho muitas vezes com ela a rir-se e de mãos dadas comigo.
Portanto não me venham dizer que os anjos da guarda não têm sexo.

Eu tenho um segredo.
Todos nós temos um segredo. Mas eu tenho um segredo que me contaram e disseram para «não contar a ninguém». Eu não contei a ninguém. Contei a mim mesma, vezes e vezes sem conta, para conseguir acreditar nele. Mas a mais ninguém. É um segredo daqueles bombásticos. Daqueles que não sabemos se rimos ou se ficamos em estado de choque.
Eu tenho um segredo.
Todos nós temos um segredo. Há a namorada do amigo que curtiu com o amigo da prima e não podemos contar. Mas temos de contar. Porque a verdade é que os segredos nos fazem mentir. Se temos um segredo e nos perguntam por ele. Mentimos. Se temos um segredo e pedem-nos para o confirmar. Mentimos. O problema dos segredos é que soam sempre a traição. Tal como todos temos um segredo, todos temos, também, o amigo que não sabe guardar segredos. Esse é o que prefere trair aquele que contou. E depois há os tipos como eu, que traem o amigo que pergunta.
Mas o meu problema é maior do que ter um segredo.
Eu tenho um segredo e deram-me autorização para contá-lo. E agora não sei como fazê-lo.
Já estou nervosa. Pronto.
Já me habituei àquele segredo. Era meu. Só meu. Sentia-me como num altar, como a importante guardiã das chaves.
Sentia que toda a confiança e as expectativas estavam concentradas em mim. Eu era importante porque tinha um segredo. E ninguém, absolutamente ninguém, podia saber. Nunca.
Mas agora posso contar e não sei como.
Como se diz a uma pessoa «eu tinha um segredo mas agora posso contar-to». Como se diz a uma pessoa «eu tive este tempo todo a mentir-te, mas a culpa não foi minha». Como se diz a uma pessoa «eu vou contar-te um segredo, mas não podes contar a ninguém»
?

Os nerds do cinema

Ultimamente descobri que me dou com muita gente do mundo do cinema. E concluí também que esse mundo fascina-me. Conhecer uma pessoa que fez um filme é uma coisa quase mágica, é como conhecer um unicórnio ou andar de tapete voador. Dá-me esperança de que seja realmente possível fazer alguma coisa. Alguma coisa diferente da pasmaceira cultural do cinema comercial.
Mas o que eu gosto mais nas pessoas que estudam cinema é imaginar o seu futuro. Sempre que vejo um filme mau, actores arrastados e diálogos incomunicável. Sempre que me revolto pelo dinheiro e tempo que gastei e nunca recuperarei. Sempre que isso acontece, desprezo os cineastas bem sucedidos. Mas a melhor parte de ver um mau filme é pensar como os meus amigos o fariam melhor.
O que eu mais gosto no cinema é o facto de tudo ser planeado. Desde as cores, aos objectos, à forma como a actriz coloca a mão no joelho. E, no meio das pipocas e dos beijinhos a meia luz, os planos sequencias e o filtro azul das luzes passam despercebidos. Saímos com a sensação de que qualquer coisa boa se passou ali, mas nunca chegaríamos a nenhuma conclusão se o nosso amigo cineasta não dissesse. «Queres saber uma coisa nerd?».
E nós queremos sempre, porque no cinema ser nerd é uma coisa fixe.

Há dias assim...

O dia em que não houve notícias

A propósito de uma conversa sobre prevenções a úlceras

«there is a paradigm shift where advertisers who were content and context oriented will have to learn to focus on people's behaviors ("it's about people, not pages")».
Será este também o futuro do jornalismo?

Verdade Verdadeira!

Hoje ouvi dizer que usar palavras como “sinceramente” é um sinal de que aquilo que se está a afirmar está longe de ser sincero. O carma cai também em expressões como “palavra de honra” e “a sério”. Isto, porque, no meu mundo actual existem muitas dessas palavras e outras várias artimanhas. Somos, então, obrigados a aprender a desconfiar.
- Sinceramente não sei do que está a falar
- Está bem, já sei que não confirma a informação, mas se quiser falar em off...
- Ok, mas promete que não me cita?
Coisa feia.
Isso tudo fez-me lembrar em como as coisas na infância eram mais fáceis. A minha mãe conta sempre que quando eu era pequenina e lhe mentia, a seguir a dizer a mentira, punha a mão no nariz para me certificar que ele não tinha crescido (como o do pinóquio). Isso era quase como falar em Off, digamos.
Mas voltando ao “mito urbano” dos siceramentes... não posso acreditar que seja sempre assim. Quando alguém diz "sinceramente, isso não me interessa" pode estar a mentir, mas também pode estar a pedir, desesperadamente, que acreditem naquilo por mais improvável que soe.
Isto porque a vida é como o jogo do lobo: existem dois tipos de pessoas.
Aquelas que nos viram “sinceramente” uns contra os outros para subir na vida e os que gritam e berram “sinceramente” mas acabam sempre por ser dados como culpados. Palavra de honra que é assim. Na verdade, devíamos fazer uma revolução para que aqueles que marquem as suas frases desta maneira pudessem ver isto reconhecido. Chamemos-lhe um derradeiro esforço romântico.
Verdade verdadeira.
Bem, com a devida margem de erro.

Não há nada mais volátil do que promessas de amor.
Ou talvez apenas o Algodão Doce.

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