O centro


Durante 4 dias desapareci. Desapareci e encontrei-me dirão alguns. Desapareci para busar-me, direi um dia. Quem sabe.
Esperava quatro dias de silencio absoluto, de mantras, kharmas, noites mal dormidas num chão de bambú e um estômago a roncar de fome.
Não tive nada disso. Quase nada. E o que tive foi infinitamente melhor.


Conforto, disse o "teaching monk" de nome impronunciavel. Para encontrar o centro precisamos de conforto. Um conforto mínimo. Suficiente. "Less is more", dizia a toda a hora. E nós absorvíamos. 
Durante quatro dias procuramos o centro e vivemos em mínimos. Fecha os olhos. Cruza as pernas. Conecta as mãos. "Bright and clear", repetiamos vezes sem conta. 


"Meditaste de verdade?", perguntam-me. E eu digo que sim. Algumas vezes, sim. É como um estado de hipnose, costumo explicar. 
Foram dias de paz e natureza onde o pensamento estava proibido. "Pensar não é sempre uma virtude", disseram-nos. Eu lutei contra essa verdade, mas acabei aceitando, evitando o raciocinio e concentrando-me no "nada". O meu nada está no meio da barriga e tem forma de bola de cristal. Quem diria.


O pais da primeira vez

O Cambodia é um pais de contrastes, contradiçoes e, talvez por isso, para mim, o pais da primeira vez.


Não me esquecerei que foi aqui onde chorei num museu. Os Killing Fields. Onde fui a uma praia paradisiaca para nadar no mar durante a noite. Ali, sem electricidade nem lua, o nosso corpo se iluminou debaixo da agua graças ao planctum. Gritei de felicidade e assombro. 


Tive a minha primeira intoxicação alimentar (não me podia livrar de uma) e comi o meu pior jantar (tenho a sensação que as duas coisas estão relacionadas). 
Fiz a minha primeira entrevista em video 100% sozinha e tive problemas. Vários. Superei-os todos. 
Realizei um sonho entrando em uma das 7 maravilhas do mundo, suspirei com o amanhecer em Angkor Wat, dormi sorrindo com os pés nas aguas turquesa de Kho Rong, vi uma migração de 8 milhões de morcegos, comi noodles recém feitos e fiz bons amigos. 


MAS. Mas esta foi também a primeira vez que tive "mixed feelings". Na capital Khmer acabei  sozinha num hostel vazio. Tomei sumo de cana de açúcar e contribui para o PIB nacional com varias doses de fruit smoothies ao dia para compensar a minha má alimentação. Porque no Cambodia toda a comida tem alho. E o alho me faz vomitar. Não vomitei mas tive dor de barriga, passei fome, sede e calor. Revoltei-me com o lixo na rua, com a arrogância e com as más formas. Tentei compreende-los. Vivi na pele o que significa estar "no segundo pais do mundo com mais feriados" e escutei uma e outra vez que estavam fechados pela "festividade". O feriado (de 2 dias) durou, na pratica, 2 semanas.


Este foi o pais dos sentimentos encontrados. Detestava o constante cheiro de comida podre na rua e, um segundo depois, me surpreendia com a beleza do lugar. Discuti com um motorista e 5 minutos mais tarde estava a rir-me às gargalhadas com outro. Fui enganada (isso é inevitável) e também dei gorjetas pela honestidade inesperada. Fiz o pior tour desta viagem e um dos melhores também. Detestei e adorei. Frustrei-me e surpreendi-me. Tentei sair do branco e negro, procurar os tons cinzas, fugi dos turistas e encontrei-me.
"Gostaste do Cambodia?", perguntam-me. Eu digo que sim, claro que sim. Quem disse que as coisas fáceis eram as melhores?

Calçada de alto risco

"Madam, madam, Tuk tuk!" É o primeiro que se escuta ao sair à rua. Tanto faz se são as 6 da manhã, as 3 da tarde ou 1 da madrugada.
Eh, lady, Taxi? Motorbike?



Respondo que não (com um sorriso) explico-lhes que gosto de caminhar. Mas eles não percebem.
"Very far, very far", dizem. Mas "how far" pergunto eu. "Ufffff.... 20min", explicam.
Nem em Laos, nem no Cambodia, nem na Tailandia, nem no Vietnam. Por aqui caminhar é um exercício de alto risco.

A moto é o veiculo familiar. Serve para levar os filhos ao colegio, transportar mercadoria, para ir a trabalhar e também para passear. Nela cabem 2, 3, 4 e até 5 pessoas. O bebé, a esposa e o animal de estimação. A comida, a vassoura ou a estatua de um buda gigante. Tudo encaixa nestas motos de pouca potencia que se multiplicam à velocidade da luz e que pouco tempo substituíram os pés.
As motorbike, essas que tanto poluem, que arrastam os remolques transformados en tuctucs, que apitam para avisar da sua presença... Essas motos são também as que ocupam a calçada enquanto senhores de giz na mão e talonario no bolso montam estacionamentos improvisados.




Em frente às casas vivem dezenas delas, mas não só. O passeio serve como deposito de coisas velhas, para acumular lixo ou até para montar um negocio.  Restaurantes portáteis de comida precozinhada invadem o cemento do sudeste asiático. Vendem fritos, sumos, noodles, fruta ou baguetes. Vão acompanhados de mesinhas e bancos de plástico. Invariavelmente vermelhos e azuis. É a street food, tão falada e popular. Foi também ela que roubou a calçada a estes individuos. Misturam-se com os mercados improvisados de roupa, sapato, material de construção, higiene ou brinquedos. Com mesas de jogo e os pequenos espaços de diversão. Porque aqui a calçada é um sitio para estar. Descansar agachado nessa postura tão pouco confortável para os ocidentais. Beber uma Beerlao. Fumar. Ver a vida passar. 





A calçada, como podem perceber, está ocupada. E então qual é o sitio dos pedestres?, perguntam os ingénuos. A questão é mesmo essa: por aqui não há pedestres.
"Nooo, noooo, too far", dizem-me cada vez que quero caminhar mais de um kilómetro. "Better motorbike", explicam-me acrescentando que só me custará um dolar. E eu, uma e outra vez, recuso-me e acumulo horas esquivando o lixo, pisando no barro, tropeçando nas pedras, ocupando a rua como um veiculo mais e parando, sempre que quero, para admirar esta vida "estrangeira". Porque por muito que aqui passear seja só para lunáticos ainda não consegui descobrir uma maneira melhor de viajar. Mesmo que a calçada esteja ocupada.

Desconfia

Tu, mochileira, que estas há um mês a viajar sozinha. Lonely travelers, chamam-vos. Um dia alguém, quem sabe invadido por uma bondade genuina, pergunta: “Queres que segure a tua mochila?”, e quando percebes já disseste que não. Claro que não. Tu e a tua mochila são só um. Ela é, na verdade, a tua única conexão com a realidade. Sem ela andarias sem rumo. Sem dinheiro, passaporte, internet, água e comida. A mochila é a tua casa, a tua essência, talvez. O remédio para as horas mortas, o entretenimento para os autocarros intermináveis. A última coisa que pensas antes de dormir e a primeira que tocas ao acordar. Os mais pícaros até lembrariam daquelas noites de sono leve e preocupado onde a mochila foi como um filho protegido pelo abraço apertado. 
Não, disseste. Porque não confias. Nem naquele desconhecido com cara de bonachão, nem nos amigos de há mais de dois ou três dias (toda uma eternidade para estes tempos). Não confias em ninguém, em suma. Só em ti. 
Viajar sozinha tem este ponto amargo, acido, ruim. Quando tu es a tua unica voz, o teu proprio doubleckeck, o teu diabo e o teu grilo falante. Quando tudo depende de ti e de mais ninguém, desconfias. Sempre.
Daquele senhor que pergunta de onde vens, que quer ajudar-te com o mapa. Da idosa que te oferece comida, que te põe uma pulseira no braço. Da rapariga que pousa para a tua foto (pedirá dinheiro?), do menino que brinca entre as tuas pernas (estão a tentar distrair-te?). Da senhora que te recomenda um restaurante (o que ganha com isso?), do mochileiro que diz que gostou do tour (essa gente gosta de tudo), do turista que diz que é barato (aposto que é rico e não tem criterio), do que fala bem de um hostel (talvez a sujidade não lhe incomode), do copo de agua que não sabes de onde vem, da comida que aparece sem ter passado pela cozinha. Do caramelo. Do desconto. Do kilo de fruta demasiado barato. Quando te apercebes passas o dia a desconfiar, a pôr cara seria, a tentar, tantas vezes sem sucesso, que não te roubem. Dinheiro, tempo, animo e felicidade.
Madam, hello, madam, dizem. E tu, automaticamente, dizes que não com a cabeça. Fazes bem, viajeira mochileira, é bom desconfiar, ouvir historias e aprender. Mas não te amargues. Aprende a dizer que não com um sorriso e quando te roubem o pagues mais do que o necesario, oh well,  como diria o meu Pai... "a vida é injusta".

manha

6 da manhã



Os dias aquí começam cedo. Pelo menos para mim. A luz entra pela janela do dormitorio barato às 6 da manha. Que bucólico. Mas, na verdade, isso só acontece quando há janelas. Quando a minha casa é um pequeno bunker, o despertador em infrasons faz o o papel dos raios de sol.
Às 6 da manha os vietnamitas fazem Tai Chi pelos parques da cidade. Há música e senhoras a dançar com os seus leques. Dançar? Ou deveria dizer lutar?


Combinado com esta melodía há um boletín de radio que se ouve pelos altavozes das cidades. Propaganda governamental?, perguntei um dia. Não, responderam-me, são mesmo as noticias. Ya. So se esqueceram de mencionar que no Vietnam todos os meios de comunicação são públicos. Que os jornalistas trabalham para o governo e que é proibido por lei criticá-lo. 


Às seis da manhã, depois das noticias, há silêncio. Esse silêncio barulhento de quando os dias estão a começar. Ouvem-se as primeiras vozes a chegar ao morning market, a vassoura de ráfia a varrer o chão onde os sapatos estão proibidos, as scooters a fazer os primeiros “pipipi” da jornada. Ainda não faz calor e isso é raro. Rarissimo. Também não há estrangeiros com quem conversar. A quem contar intermináveis batalhas. De quem ouvir historias eternas sobre viageiros intrépidos. Às seis da manhã os meus prezados companheiros de aventura, dormem. E eu agradeço. Agredeço um momento de silencio no meio de dias tão completos e intensos. 
Porque aquí os dias cansam. E muito. Regateamos tudo, por exemplo. Constantemente. Até a comida. Não queremos ser enganados. Somos viajeiros experientes, não turistas, dizem os meus companheiros. E viajar, neste caso, é um trabalho. A nossa labor é cada dia conseguir gastar menos e, ao mesmo tempo, disfrutar mais. Escolher o melhor sitio a onde ir, o melhor restaurante e melhor experiencia. Fugir dos selfie sticks e dos party travelers. Entender como vivem os locais mas sem deixar-se enganar. Tarefa complexa. 



Estamos sempre alerta. Com o dinheiro dividido em três carteiras,  os lockers bem fechados e a mochila virada para a frente. Conferimos o troco e as notas do multibanco. Há quem, inclusive, tire fotos. “Uma vez tentaram trocar um nota minha por uma falsa”, conta o viajante que tem o telemóvel cheio de fotografias de códigos de barra e números de serie. 
Viajar é um negocio maravilhoso e ruinoso.
E é por isso que aprendí a gostar tanto das manhãs. Essas horas do dia nas que ainda não há maldade. Quando ainda não começou o regateio constante. El tira y afloja. Faz a mochila, fecha o cadeado, confere o passaporte, conta o dinheiro, faz um planning para o dia, procura onde comer, faz amigos, bebe, desfaz-te daqueles que não te interessam, deixa-te enganar e aprende. 
Às 6 da manhã é o meu momento para processar. 

E assimilar.

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