"No somos sino peregrinos que, yendo por caminos distintos, trabajosamente se dirigen al encuentro de los unos con los otros"

Antoine de Saint-Exupéry

La doble fila

Há um fenómeno por aqui que me irrita especialmente. É chamado carinhosamente de “doble fila” e consiste em parar o carro no meio na estrada, pôr os quatro piscas e ir passear. Sim, isso mesmo.
O problema é que hoje à hora do almoço eu não estava no meu melhor momento. Tinha fome, sede e calor. Um artigo enferrujado para escrever à tarde, um telefonema pendente, uma futura discussão com o chefe que já não havia como evitar. Na rádio só contavam desgraças e eu tinha ainda o almoço por fazer e a roupa por lavar. Foi então que o carro que está a minha frente na estrada resolve “armar-se em espanhol” e, sem nenhum aviso prévio, pára o carro, puxa o travão de mão e liga os piscas. Eu, que vinha atrás dele, tenho de travar bruscamente e, segundo o código de honra das estradas espanholas, deveria contornar o seu carro, passar um traço contínuo e entrar em sentido contrário para poder, assim, continuar a minha viagem a casa.
Mas, como já tinha dito, eu estava a ter uma má hora de almoço. Decidi então descontar todo o meu mau humor no tráfego espanhol. Parei o meu carro atrás ao do senhor e, ao invés de contornar o obstáculo, pus a mão na buzina e esperei.
Seguiu-se um “Piiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii” contínuo que fez com que os comerciantes saíssem à porta. O motorista da frente não queria acreditar. Olhou para trás, fez um gesto para que eu ultrapassase o seu carro e eu nem pestanejei: “piipiiiiiiiiipiiiiiiiiiii” foi a minha resposta. O condutor, atónito, resolveu tirar o carro dali e eu, inspirada pela boa acção que tinha acabado de fazer ao trânsito espanhol, resolvi no percurso do trabalho até casa buzinar a todos os carros parados em “doble fila”. Foram exactamente 17 buzinadelas em um trajecto de 5 kilómetros.
Cheguei a casa feliz e realizada. Tinha descoberto uma nova forma de afastar o meu mau humor.

Bem-vindo à minha vida

Eu bem sabia que aquela noite em claro não me faria bem, que naqueles dias inteiros a trabalhar deveria, pelo menos, ter almoçado. Bem me avisaram que não valia de nada gritar, espernear, insultar até à exaustão aquele chefe não presente.
Já me tinham dito que as lágrimas choradas naquela casa de banho pública deixariam as suas marcas, que daquela vez que duvidei deveria ter instantaneamente perguntado para não andar meses a especular em pesadelos recorrentes.
Já sei que me alertaram que não deveria dormir com o telemóvel debaixo da almofada nem apanhar sol ao meio-dia. Cuidar do cabelo, hidratar a pele, pentear-se. Tudo muito bonito da teoria.
Sempre soube que tinha de aprender a deixar de levar o peso do mundo nas costas. Que tinha de me separar mais dos problemas que me rodeavam, que precisava encarar a vida menos seriamente. É a culpa cristã, diziam os meus amigos. Mas eu só concordava parcialmente com eles.
Tinha de ter sido mais flexível, mais boa onda, mais bom feitio, menos exigente com cada um dos objectivos a que me tinha proposto. Mas não fui. Tinha de ter estudado como controlar os sonhos, relaxar a mente, concentrar-me com mais facilidade. Não o fiz.
Foi então que, inevitavelmente, hoje encontrei o meu primeiro cabelo branco. Queria aproveitar para lhe pedir desculpa pela sua nascença prematura e contar-lhe uma coisa que, quem sabe, pode reconforta-lo: quando tinha 15 anos passei por 21. Agora tenho 22 e todas as pessoas me dão 27. Se acreditarmos na sabedoria popular, já estou perto dos 30 o que, dada a quantidade de tinta que tenho no cabelo, deve ser uma época bastante normal para te trazer ao mundo. Portanto, novo cabelo branco, terás que contentar-te com esta humilde recepção:
“Bem-vindo à minha vida, meu caro. Prometo que ainda nos divertiremos muito juntos. Não me deixarei influenciar pela cor da cabeleira.”

Gorgeous

Desde que estou em Vigo já dormi com fogueiras na praia, já tomei o pequeno-almoço na lota, já provei que era possível comer por um euro e até já fui entrevistada pela BBC. Mas a história da minha estadia nesta cidade olívica estaria incompleta se não mencionasse o dia em que o Leonard Cohen pousou nestas paragens.
Era o concerto do verão. Entradas esgotadas ha meses, dispositivos policias a mercê do pai do hallelujah, nos cafés e nas ruas era o assunto estrela. Mas havia um problema para este jornal com síndrome de “segunda-semana-de-agosto-os-políticos-estão-de-férias”: o Leonard Cohen não dá entrevistas. Era uma quinta-feira de manhã e lá chego eu à redacção pronta para mais um dia de namoro com as palavras para compor a minha reportagem de fim-de-semana. “Marina, o Cohen não dá entrevistas, vai entrevista-lo”, disse-me o meu chefe quando entrei pela porta.
E assim começava mais um dia lendário.
As seis horas que passei a porta do seu hotel armada em paparazi são só uns ingredientes mais para a lenda que contarei os meus pobres filhos. A barriga a roncar de fome, o fotógrafo que assustou a estrela, a conversa maliciosa com os seus assistentes são apetrechos auxiliares que devem ser contados em quantidades “dosificadas” para manter o público concentrado. Porque o que interessa realmente contar aos meus leitores sedentos de novidades foi o momento em que, depois de relatar esta longa e auspiciosa aventura ao meu chefe, ele gritou para a redacção: “Ela entrevistou o Cohen”. E eu gritei de volta: “E ele chamou-me gorgeous”. Desde então, todos os dias sou recebida com o mesmo cumprimento:
- Qué tal gorgeous? Cómo va Leo?

Andar? Nao, eu prefiro caminhar.

Se há uma semana atrás alguém se virasse para mim e me dissesse: “Nos últimos dez meses não usaste nenhuma vez o passado do verbo andar” eu rir-me-ia na sua cara, diria que estava louco e até seria capaz que sentir-me um pouco insultada. Sim, está bem, já sei que o meu espanhol não é aquela maravilha… mas o verbo andar? Vá, pelo menos até ai posso garantir que o meu vocabulário chega.
Infelizmente, nestes últimos dias esta história banal teve um inesperado twist.
Como estrangeira consciente das suas debilidades linguísticas (e depois de ter passado por umas vergonhosas humilhações que prefiro não recordar), não demorei muito tempo a perceber que os correctores ortográficos têm de ser bem tratados e mimados porque a nossa vida depende deles. Foi devido a essa premissa que criei o (inteligente) hábito de nunca escrever uma linha de texto sem passa-la antes por um corrector “solo por si acaso”.
Foi então que esta semana se passou uma coisa curiosa. Estava a escrever-lhe um mail quando o meu Amigo e Aliado corrector automático colocou uma minhoquinha vermelha por baixo de uma palavra. Dizia-me que “andaste” não existe. Parei um pouco para pensar. Confirmei na minha gramática mental que o passado do verbo amar era “amaste”, o do verbo escuchar era “escuchaste” e o do nadar era “nadaste” . “Bem, este corrector está louco” reflecti. E só para não ofender a máquina nem subestimar o seu conhecimento fui perguntar ao Santo Google. Dei uma vista de olhos ao primeiro resultado da pesquisa “conjugar el verbo andar” e, por coincidência, (estariam todos os computadores com um nó mental?) não me havia nenhum verbo parecido com “tu andaste”. Insisti um pouco nessa página, mas só apareciam conjugações estranhas que deviam ser “daqueles tempos que nunca se usam”, concluí.
Por fim, e para não ofender o Santo Google, nem o Grande Amigo e Aliado corrector automático, optei por substituir “andaste” por “has andado” fingindo não me lembrar das regras restritas que o professor de espanhol me tinha passado sobre a utilização do tempo composto.
E eis que surge a resposta ao mail. Ele, esse mestre da língua espanhola e melhor amigo da Rae responde-me como que fazendo troça das minhas dúvidas existências: “Si, yo anduve mucho”.
Passou-se tudo num segundo. A minha respiração parou, o dedo deslizou para a tal página do Santo Google e buscou outra vez “aquelas-conjugações-estranhas-que-deviam ser-daqueles-tempos-que-ninguém-usa”: Pretérito Perfeito do Indicativo: yo anduve, tu anduviste…
Pânico. O coração palpitou. “Marina, pensa rápido se em todo o tempo que estás em Espanha alguma vez já tiveste que utilizar o verbo andar no passado”, dizia a minha consciência. “Pensa nas apresentações orais, nas colaborações com a rádio local, nas intervenções das aulas. Por Favor, suplico-te, diz-me que não passaste por essa vergonha”.
Podia ser uma palavra invulgar, um verbo complexo, um tempo verbal esquisito. Mas não. Era o passado do verbo andar. Esse simples e banal verbo andar.
Então tomei uma decisão que mudou o passado da minha história espanhola. Disse para mim mesma: “É que eu até hoje usava sempre o verbo caminhar”.
E esta passou a ser a versão oficial.

Oposição

Uma das primeiras palavras que aprendi quando cheguei a Espanha foi o verbo “opositar”. Isto porque logo no primeiro dia na minha nova casa umas das raparigas que lá vivia contou-me que esse era o seu sonho. Nessa tal primeira vez tive vergonha de lhe dizer que não sabia o que significava a palavra e imaginei que tivesse algo que ver com formar parte de uma força da “oposição”. No segundo dia ela voltou a falar sobre o tema e comentou como era difícil “fazer oposição”. Pensei em todos os autores revolucionários que tinha lido ultimamente e concordei com ela. Mas à medida que o meu espanhol foi melhorando, fui apercebendo-me que esse tal trabalho que ela queria não era tão nobre quanto eu pensava. Então ela explicou-me:
- Opositar é fazer um exame para trabalhar para o governo, sabes? Trabalhas das 9 as 14h, ganhas bem e não te podem despedir. O melhor trabalho de sempre.
Ah, então ela queria ser funcionária publica… Mas em que área?
- Isso é-me indiferente. Não me importo de fazer qualquer coisa.
Fiquei chocada. Como era possível que o sonho da sua vida fosse ser funcionária pública? Sem mais. Não queria ser professora, contabilista, advogada ou notária do estado. Não queria cozinhar para o primeiro-ministro, ser polícia nacional ou cuidar de crianças necessitadas. O seu sonho era apenas pertencer a esse grupo de pessoas que “trabalha pouco, ganha bem e não pode ser despedido”.
O problema deste país é que, como essa minha amiga tinha comentado, é “muito difícil” conseguir esse trabalho. Simplesmente porque o sonho de todo o espanhol é ser funcionário público (alerta margem de erro!). O mais grave é que a sociedade parece ter chegado ao acordo comum de que trabalhar para o Estado, seja fazendo o que for, é o “melhor trabalho do mundo”. Já conheci pessoas que estão há três anos desempregadas estudando para fazer o tal exame, outras que estão a tirar um “curso qualquer” só para na altura de “opositar” receber um salário melhor e ainda houve outro que me tentou consolar: “Se não arranjares emprego como jornalista sempre podes voltar para o teu pais e opositar, com um mestrado ganhas mais!”
Eu tenho uma profunda implicância com os funcionários públicos. Isto porque numa verdadeira economia de mercado, um emprego que tenha mais segurança deveria, em termos teóricos, ser pior remunerado (é o que explica, por exemplo, o fenómeno dos free-lancers). Em Espanha (e em Portugal também) os funcionários públicos são os menos produtivos, os que têm menos horas de trabalho e são melhor remunerados de grande parte da população activa.
A única razão possível que encontro para isto é que como são tantos, ninguém se revolta. E ainda aproveitam para espalhar esse mito do trabalho de sonho para justificar a insignificância da sua existência.

Não se esqueçam de considerar a devida margem de erro, sim?

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