Em Portugal...

Foi uma temporada muito útil a que eu passei em Portugal.
Serviu para me lembrar que há países em que as lojas (todas!) abrem aos domingos. E os supermercados também.
Para perceber que com o sol o meu cabelo fica mais vermelho. E que é possível usar manga curta em Fevereiro.
Ajudou a lembrar-me que há culturas que almoçam ao meio-dia e jantam às oito. E que um telejornal pode ter uma hora e meia de duração.
Que os actores americanos afinal falam inglês (e não espanhol) e que eu falo melhor espanhol do que a Penélope Cruz fala inglês (ou pelo menos gosto de acreditar nisso)
Fez-me perceber que perguntar “que horas são” tem muito mais sentido do que “que hora é”. Que a Estrela Galicia é melhor do que a Super Bock e que as comidas típicas portuguesas não servem para vegetarianos.
A estadia lembrou-me que todo o homem tem uma mulher dentro de si (por mais que negue, negue e negue). E que a neura da crise passou a fronteira.
Percebi que os portugueses não dizem “prazer”quando se conhecem e que em Lisboa não há problemas de estacionamento. Que já não vale a pena andar de transportes públicos (um euro e sessenta???) e que, a julgar pelo número de obras, vêm ai as eleições.
Conclui que o Público é o meu jornal preferido. Que tinha saudades do perfume da minha casa e que a Floribela já não super hiper ri-fixe.
Tal como disse, foi muito útil.

Gilipollas!

Ultimamente tenho me debatido muito com “o sotaque”.
- Por que dices que no tengo un buen acento español? – perguntei um dia ao Brutos (pseudonimo que o meu amigo inventou para si mesmo, para deixar de ser citado no Margem de Erro como “um amigo”).
- Por quez dizez que noz tzengo un buenz azentoz ezpañol? – repetiu o Brutos com ar de desprezo. Tenteu convence-lo de que falo bem, de que é o ouvido dele é que tem problemas, mas ele é o Brutos e nunca daria o braço a torcer.
Resolvi, então, mudar de alvo e tentar fazer a pergunta ao menino bonzinho da turma, de certeza que ele iria dizer que o meu acento é perfeito.
Ele propõe-nos uma palavra-teste (só para não nos dizer, assim de cara, que somos uma lástima).
- Quando conseguirem dizer bem a palavra “gilipollas”, estão pronta para falar bem espanhol.
- Gi-li-po-llas – gritava eu e a Carol no meio das ruas de Lisboa.
- Não - dizia ele - Gi-li-po-llas.
- Gi-li-po-llas – gritávamos cada vez mais alto. Seguiam-se caras de desilusão, gargalhadas e gestos de desistência. Horas depois de ouvir, repetidamente, a mesma palavra, o nosso amigo teve piedade para connosco (e para com o seu ouvido) e disse que estávamos muito melhor.
!Muy bien!
Hoje fomos, então, falar com o Brutos para fazer o teste final.
- Gi-li-po-llas! – Gritámos.
- Dizendo isso dessa maneira, nunca conseguirão o respeito de ninguém – sentenciou, sem que fosse preciso perguntar-lhe a opinião. Riu-se, passou-nos a mão pela cabeça, e foi-se embora.
E essa foi, de facto, a primeira vez que nos apeteceu gritar aquela palavra de verdade. Mas não o fizemos. Sabemos que há que treinar um pouco mais.
Dizem que o problema está no “o”. E no “lla”. Que o mais difícil é o “s”. Mas também já confessaram que o nosso “gi” não é muito bom.
Mas vamos conseguir. Nem que seja para podermos chamar “gilipollas” ao Brutos.

Domingo

Quando eu era criança, domingo era dia sagrado. As minhas amigas queriam sempre combinar brincadeiras para esse dia e eu respondia que não dava, mesmo antes de perguntar aos meus pais. Domingo era dia de família. Era de sair de casa de manhã e fazem 500 quilómetros para ir almoçar ao Alentejo. Era dia de ir jogar bowlling à tarde e ver um filme com um saco de gomas de 200 escudos e um copinho de coca-cola. Era o dia em que íamos com caretas à missa e quando saímos o meu pai perguntava-nos sobre o que é que tinha sido o sermão do padre. Era dia de teste de concentração.
Depois fomos crescendo e domingo transformou-se em manhãs de caminhadas no paredão e tardes de estudo que deixavam o pulso dorido. Domingo era dia de suspirar porque ainda faltava uma semana para que fosse sábado outra vez.
Ate que houve aquele ano em que sem família, nem estudo, domingo era dia de passeio de braço dado pelas ruas movimentadas, de horas à espera do click perfeito, de espectáculos de rua e um gelado de chocolate. Mas passou depressa. Depressa demais.
De regresso à realidade, o domingo voltou a ter gosto de maresia e batatas fritas. As tardes eram passeios pela baixa pombalina, inaugurações de museus e um ou outro café com scones e chocolate quente.
Agora sinto que não dei importância suficiente a todas as diferentes versões de domingos familiares que tive ao longo da vida. Porque em Espanha, domingo também é dia de família. Mas nos domingos espanhóis não se pode jogar bowlling, ir ao café, ao cabeleireiro, ou fazer compras. Porque domingo é dia de ficar em casa. Até para os comerciantes.
Institui, então, que domingo seria dia de limpar a casa, lavar a roupa, arrumar o quarto e pintar as unhas. Que domingo seria dia de enfrentar o ecrã do computador, mergulhar nos livros e blocos de nota. Que no domingo iria ler todos os jornais e ouvir os meus podcasts preferidos. Mas hoje dei-me conta de que isso não tem lá muita graça.
Porque domingo é dia de família. E por mais que eu me tente enganar, a minha não está por aqui.

Hoje um professor disse: "Os vossos trabalhos estão excelentes". E nós sorrimos.
Depois acrescentou: "São como os filmes americanos: imbatíveis". Alguns reforçaram o sorriso, outros franziram a testa.
Rematou, então: "Porque nos filmes americanos, tal como nos vossos trabalhos, se nota a paixão que eles têm pelo que fazem". E foi então que eu pensei: "Será que os trabalhos estão assim tão maus?". Mas devo ter sido só eu.

Quando as palavras saem do armário

Ultimamente tenho pensado muito sobre as opções sexuais das palavras.
E cheguei a uma conclusão: as palavras não deveriam poder ser gays.
Uma pessoa convive a vida toda com “a água”, imagina-a com um batom cor-de-rosa a comprar um vestido novo nos saldos. A água é delicada e fala baixinho, usa brincos de pérolas e sapatilhas de boneca.
E “a arte”? Durante toda a nossa vida imaginámo-la com o seu fato executivo cinzento-escuro, cabelo apanhado e uma pasta de documentos na mão. Vemo-la passear pelos museus de salto alto para que façam tic-tic nos corredores. Tem apertos de mão confiantes e unhas pintadas de vermelho.
Mas não é só com as mulheres. Vejamos o sal, por exemplo. Aparece todos os dias com o seu ar branco e granulado e faz-nos companhia nas refeições. Um velhinho de voz tremula e tosse acatarrada. De corcunda grande e passinhos de formiga.
E é então que um dia aparecem os espanhóis. Vêm ter contigo e dizem-te: “Minha menina, aqui no nosso país as palavras decidiram sair do armário”
A água virou menino traquina, a arte um empresário bem sucedido e o sal uma senhora com os dentes borrados de batom.

Como se não me bastasse o trauma do dia em que descobri que em alemão "as crianças" são assexuadas…

A "subasta" da "lonja"

Foi um dia que ficará marcado ma minha memória de estudante. O dia em que aprendi duas novas palavras numa mesma frase.
- ¿Queréis venir a la subasta de pescado en la lonja? – perguntou a professora.
- Sim! Claro que sim! – respondi entusiasmada.
Uma pessoa que sai do seu país, estabelece-se numa nova cidade, inscreve-se num mestrado e começa a construir uma vida do zero, não está em posição para negar as propostas educativas dos professores. Claro que quero ir à “lonja” ver a “subasta”. O que quer que isso signifique.
- É tipo aquilo que fazem para vender os quadros, mas com peixe – explicou-me uma amiga.
Um leilão de peixe na lota, portanto. A minha cara perdeu por alguns minutos a expressão de entusiasmo e voltei a centrar-me no que a professora estava a dizer.
- … então encontramo-nos às sete da manhã na lota …– é impressionante como a coisa foi ficando menos e menos interessante.
Dia seguinte. Seis da manhã. Toca o despertador. Cheguei à cozinha e lembrei-me dos conselhos de um amigo: “Nesse dia não bebas leite ao pequeno-almoço para não enjoar com o cheiro a peixe”. Optei por umas tostas com manteiga.
Chegando à lota (e depois de ter ficado com nódoas negras na perna por causa do temporal de granizo que estava a haver naquela manhã), descubro que da turma de 15 pessoas só houve seis alunos corajosos que haviam madrugado para essa “excitante” visita de estudo.
Na lota às seis da manhã é como se fosse três da tarde. Não há olhos de sono, nem caras amassadas. Há ventilação central, o que alivia o cheiro, e mais de uma centena de pessoas a negociar… peixe.
Nas paredes avisos que dizem “Não pisar ou cuspir nos peixes”. Mas na lota da Coruña ninguém obedece a esses avisos. Não há luvas nem cartão de crédito e a mesma mão que toca no dinheiro verifica a qualidade do peixe. Nos pés, aquelas galochas brancas que usam as senhoras da peixaria do supermercado. Com a diferença que as galochas da lota da Coruña estão um pouco mais a tender para o cinzento e são usadas para pisar “ao de leve” o peixe para ver se está fresco.
“É a lota mais higiénica da Galiza”, explica-nos um dos seguranças.
O leilão da lota funciona ao contrário. “10,90; 10,80; 10,70; 10,60; 10,50; 10,40; 10,30; 10,20, 10,10”, grita o leiloeiro vendendo o preço do quilo do peixe a uma velocidade humanamente impossível. Os leiloeiros são homens com muitro prestigio na lota, contam-nos, é preciso muita experieicia para leiloar bem. Cada leilão dura cerca de 2 minutos e acontecem dezenas de mesmo tempo. “Há especialistas em leilão de peixe que são contratados pelas grandes empresas só para comprar o melhor peixe ao menor preço”, conta o nosso “guia”.
E nós ali, sem galochas, sem dinheiro na mão e sem autorização para pisar ou cuspir na valiosa matéria-prima. Em uma hora estava tudo acabado. As peixeiras foram abrir os mercados, os grandes empresários foram “dormir a cesta” e nós voltámos ao estudo como se a “lonja” fosse apenas uma parte de um sonho demasiado real.
Um sonho onde as pessoas acordam as 3 da manhã e pisam no peixe que vamos comer à hora que eles voltarem para a cama.

Esse País chamado Galiza

Eu olhei à volta desconfiada, respirei fundo e voltei a olhar. Pensei para mim, “mas eles estão mesmo a discutir isto ou é só mais um dos meus problemas de espanhol?”
Perguntou a professora:
- Mas a que é que vocês acham que se está a referir a palavra “país” nesta frase?
- Pois, realmente tem um sentido dúbio – disse alguém lá no fundo da sala.
- Porque “o melhor filme deste país” tanto pode querer dizer que é o melhor filme da Galiza como da Espanha - esclareceu a professora.
Eu ri-me. E olhei à volta à espera de gargalhadas solidárias. Estranhamente, não houve mais nenhum sorriso sonoro. As pessoas tinham mais um ar pensativo, preocupado, aquele próprio de quem reflete sobre “os sentidos dúbios das palavras”.
Ahm?
E então a professora volta a clarificar a situação. “Porque por mais que nos refiramos no dia à dia à Galiza como país, aqui no jornal essas coisas não são muito bem aceites”.
Não resisti.
- Mas espere um pouco professora, ele aqui no texto quando diz “país” está mesmo a querer dizer Galiza?
A professora olha-me com um misto de ar de espanto e de coitadinha-da-estrageira-ainda-não-sabe-nada-da-vida.
Depois de depreender que a sua expressão de pena e assombro significava “sim”, acrescento indignada:
- Mas ele acha mesmo que a Galiza é um país? – E nesse momento posso jurar que franzi a testa, pondo a minha melhor cara de nojo, incompreensão e arrogância.
Risos, risos, risos, ouço até gargalhadas. Fico vermelha. A pergunta que deveria ter causado revolta naquela sala de aula de jovens cultos e instruídos saiu-me torta.
Mais risos e agora comentários para o colega do lado. Resolvo então tentar remediar:
- Não, não é isso. Eu percebo que ele possa achar que a Galiza é um país, mas daí a escreve-lo numa peça jornalística…. - Eu na verdade não percebo que ele ache isso. O meu conhecimento político e geográfico nega-se a assimilar essa informação. Mas parece que sou a única.
É então que a professora desiste de mim e conclui:
- Vêm como é uma expressão dúbia? Sempre podem haver pessoas mais confusas - e volto a jurar que o disse com um tom jocoso enquanto de me olhava de esguelha - que não entendam bem o significado da frase.

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