Countdown

Vêm aí as ferias e com elas o drama de todo o mochileiro inexperiente. O exercício torturante e auto-ditador de estabelecer um número limite de peças de roupa. Sapatos, só três. Nada de brincos, maquilhagem e secadores de cabelo. Exercer o desapego, é a minha palavra de ordem. Tudo pelo bem das minhas costas. Das minhas costas com escoliose aguda.
Então toca a pensar em quais são os sapatos mais confortáveis, as calças que não apertam e os tops super versáteis que dão tanto para um passeio pelo parque como para uma noitada na discoteca de moda. Abro o armário e vejo as minhas roupas a estender a mãozinha e a gritar “eu, eu!”. Percebo-as. Quem não quereria embarcar grátis numa viagem transatlântica? Eu gostaria levar tudo. A sério. Coração de mãe é assim. E agora estou aqui, a viver e a sofrer esse dilema existencial de escolher entre a camisola azul ou a preta de botões. Como a vida é dura. Vou separando, meticulosamente, cada item e pondo tudo em montinhos, montinhos que já vão sendo montões. Saco de cama, toalha, clinex, tampões de ouvido, livros, o guia impresso online. Os documentos mais importantes na dropbox, verificar o roaming do telemóvel, ver a taxa de câmbio, a previsão do tempo.
Meus amigos, estou quase de vacaciones!

R.I.P

Como são duras as separações! Agora que já não estás, lembro-me com melancolia de todo o tempo que passámos juntas. Uma vida!
Recordo aquelas longas caminhadas cheias de bolhas e feridas. Os dias de praia com areia a deslizar pelos dedos. As viagens, quantas viagens. Lembro-me daquela vez que estiveste doente e eu passei dias a cuidar de ti. Não te enganes, eu não me queixo. Foram momentos de estreitar laços, de valorização da tua existência, momentos só meus e teus. Nossos.
Nunca me vou esquecer da nossa guerra pelos sapatos. Havia aqueles que não gostavas (mas que eram tão bonitos!) e discutíamos sempre que eu os punha. Dizias que o conforto vinha sempre em primeiro lugar e eu, teimosa, insistia no bonito barato.
Agora foste-te. Melhor assim, já não suportava ver-te ai, oca, sonsa, aguentando uma existência sem sentido. Tudo culpa de um acidente fatal, dizem para me confortar. Mas nada me conforta.
Nada te substituirá. Nada substituirá a unha do pé que hoje perdi.
Rest in peace, unha do dedo grande, requiescat in pacem.
Dizem que dentro de um ano nascerá uma nova unha neste dedo de carne que actualmente ostento. No entanto, tenho a certeza que nenhuma será tão especial como tu.
Eram dez, agora são nove. Sentiremos a tua falta.
Falo por mim e pelos sapatos e meias deste mundo. Como é obvio.

Comprar um gato

Caros amigos, é oficial, cheguei ao fundo do poço. Outro dia conversava com uma amiga sobre a vida, os amores e desamores desta existência cruel. Ela, cujo namorado agora está fora, desabafa:
- Preciso de um namorado
- Cala-te! – respondo, dando-lhe uma chapadinha amigável no ombro – Tu já tens namorado. Quem precisa de um namorado sou eu!
Então ela olha para mim com um ar de dúvida. Franze a testa e pergunta, visivelmente perturbada:
- Querias ter um namorado, Marina?
Eu, sem perceber o alcance da pergunta digo-lhe que querer, queria, mas que está complicado encontrar alguém de quem goste, blablabla. Mas porquê?
- É que eu… sei lá… Es tão gira e estás há tanto tempo sem namorado…
Agora é a minha vez de franzir a testa, explicar que sou exigente e começar a buscar uma segunda intenção para esse comentário. E então ela solta:
- É que claro… Eu achava que talvez… fosses….
Silencio. Caras. Intuição.
- Lésbica?????
-Sim…
Fundo-do-poço. Próximo passo, comprar um gato.

A resistência

As minhas amigas aqui na Coruña são betinhas, muito betinhas. Às vezes saímos para jantar. Somos umas oito, nove. Quando chego ao restaurante ali estão elas. É fácil encontra-las. Basta seguir o cheiro dos perfumes e as olhadas dos homens descarados. Maquilhagem Chanel, cabelos penteados, vestidos justos, mini-saias, tops transprentes, malas de 200 euros, sapatos com saltos de 10 centimetros.
Quando andamos pela rua, toc toc toc, são incontáveis os números de piropos, de rapazes que vêm meter conversa, de namoradas furiosas pelo olhar furtivo do seu homem. Agora imaginem esse cenário e juntem-lhe uma rapariga mais: eu, o patinho feio. Calaças de ganga, all-star e t-shirt larga.
Elas perguntam-me porque nunca me maquilho e eu respondo com sorrisinho maquiavélico: “Porque ao contrário de ti, eu não preciso." E elas riem-se e gostam de ter-me por perto, sou como o membro exótico do grupo. Em Portugal diziam-me que eu era uma tia do Estoril, aqui, dizem-me que sou A Resistência. Gosto disso.

A cozinheira

Eu sou daquelas pessoas que não cozinha. Daquelas que queres evitar fazer uma visita a horas de refeição. Nunca vou ao supermercado e nunca tenho comida em casa.
Almoço no trabalho e, de preguiçosa, não janto. Nunca janto.
Nem sempre fui assim. Já fui daquelas que quase não almoçava e defendia a importância do jantar. Antes, com papá e mamã. Mas agora, mãe e pai de mim mesma, cozinheira da minha própria pessoa, descobri os minutos perdidos a preparar as refeições, os vernizes estragados da louça lavada à mão. Os cheiros, a gordura e os restos.
Resolvi mudar de vida, ceder ingredientes a amigos cozinheiros ou simplesmente desfrutar de deixar euros em comércios que fazem comida para me alimentar. Não sou esquisita, ingiro qualquer tipo de substância que dê energia ao meu corpo. Elogio sempre os petiscos alheios e retribuo-lhes com beijinhos, abraços e “o que seria da minha vida sem ti”. Esses mesmos amigos simpáticos acham que eu não sei cozinhar. Não conhecem o meu passado de massas, saladas e inventos culinários. De jantares à luz de velas e receitas impressas no trabalho. E eu não refuto. Oculto toda e qualquer tipo história gastronómica. Porque, enquanto durar, continuarei a viver da fama de coitadinha-não-sabe-fritar-um-ovo. E direi, com orgulho, a todos os que quiserem ouvir: eu sou daquelas pessoas que não cozinha.

Welcome_to_my_life #4

Amanhã é o meu último dia neste turno-tortura. Foram três semanas intensas, stressantes e de um profundo auto-conhecimento:
- Descobri que posso ser totalmente asocial. Senão vejam: durante este período a pessoa com que tive mais contacto extra-laboral foi o Planctus: é verde, faz a fotossíntese e vive na minha sala. Conversamos muito e somos felizes juntos.
- Apercebi-me que sei mais asneiras em espanhol do que achava que sabia.
- Digo “bom dia” à senhora da TV que todos os dias dá as novidades da Bolsa. Chama-se Gloria, mas na redacção conhecemo-la carinhosamente como “Olga”. Somos felizes juntas.
- Digo coisas como: “Oh pá, já podia morrer alguém não?” ou “Va lá! Que apareça algum incêndio! Pirómanos deste pais, manifestem-se!”. Na redacção esses comentários são aplaudidos e vistos com muita naturalidade.
- Estou platonicamente apaixonada por uma voz.
- Odeio qualquer ser humano que não tenha olheiras.
- Aprendi que um segundo pode mudar a nossa vida (ou pelo menos a vida de um telejornal).
- O stress dá-me enxaquecas e as enxaquecas deixam-me de mau humor (dai que o Planctus seja actualmente o meu único – e melhor - amigo).

Welcome_to_my_life #3

Hoje acordei e o espelho assustou-se com as minhas olheiras. A minha media diária de de sono ronda entre as 4 e 5 horas por noite. Desisti de dormir a sesta e de fomentar o mau humor. Agora estou apenas cansada.
Acordo cansada e cansada chego do trabalho depois do almoço. Cansada arrumo o quarto, limpo a casa e vou ao ginásio. Dali volto com ainda menos energias. Já com um grau de estafamento demasiado elevado tento socializar e engolir a resmunguice, mas a uma certa altura da minha boca deixam de sair palavras, só grunhidos.
No fim-de-semana o relógio biológico fala mais alto e os meus amigos gritam com toda a força: “velha!” sempre que anuncio a minha retirada depois do primeiro bar. Durante a semana colecciono recusas de convites para ócio nocturno.
Mas agora já nem sequer me queixo. Também disso me cansei.

Welcome_to_my_life #2

Pronto. É oficial: sou motivo de chacota no trabalho. Em cada pausa para o café, em cada hora do almoço, o assunto é sempre o mesmo. Querem saber se dormi, como dormi, quanto dormi e, melhor, quantas pessoas maltratei durante a tarde. E eu, qual paciente sentada no divã, conto. Digo-lhes que outro dia, seguindo vários conselhos, decidi tirar o relógio do pulso e viver a tarde sem stresses. O resultado foi um dia de olhares desconfiados para a altura do sol e uma noite de ataques de pânico: “não sei que horas são, mas tenho de dormir”. Segundo fontes próximas, parece que me deitei à uma e meia da manhã. Quatro horas depois tocava o despertador. Seguiu-se-lhe o mau humor e cansaço correspondentes.
Conto-lhes também que no seguinte a essa desastrosa tentativa resolvi dormir uma sesta. O resultado foi uma tarde de quatro horas de sono babando a almofada e um acordar tão desesperado que me levou directamente ao ginásio. Uma hora depois estava de volta a casa, de banho tomado e outra vez na cama. Eles riem-se. Eu conto-lhes que sou assim, sempre fui, que preciso dormir dez horas por noite. Eles espantam-se, quase durmo mais tempo do que estou acordada, comentam. Mas dormir é fixe, tento explicar. Quando dormimos não precisamos comer, nem falar, nem conviver com outras pessoas. Podemos sonhar! Eles dão gargalhadas e acham-me estranha.
Acho que a minha popularidade laboral está a cair a pique.

#Welcome_to_my_life

5.15 – Toca o despertador.
5.30 – M. acaba de assimilar que o despertador tocou, que é de noite, mas que tem de se levantar. Que é de dia, mesmo que não haja sol (nem qualquer vestígios dele).
6.00 – M. sai de casa e começa um fernético zapping de rádio tentando anotar mentalmente quais as noticias mais importantes do dia. Desiste. Saca o bloquinho de notas e anota enquanto conduz: alerta acidente.
6.15 – M. chega ao trabalho. Acende as luzes da redacção e cumprimenta as empregadas da limpeza.
7h – A equipa da manhã já chegou (e quando digo “equipa” são as três pessoas com quem trabalha). O primeiro telejornal é às 8h.
11h – Já passaram 5 horas desde que chegou, já se emitiram quatro telejornais (um por hora) e M. ainda não se levantou da cadeira. “Ah, já é dia lá fora” (é a primeira vez que tem tempo para olhar pela janela).
14h – Já só falta uma hora de trabalho e o cansaço da equipe é notável. O resto da redacção vai chegando com cara de sono. “Cheiras a leitinho”, pensamos.
16h – Trabalho acabado e almoço comido. No caminho de volta para casa, os olhos fecham e o corpo dói. Objectivo: dormir uma siesta.
16.30 – “Mas eu não deveria dormir, senão não tenho sono à noite”. “Bem, se dormir só 20 minutos, depois aproveito melhor o dia”. Planos do dia: praia + ginásio + jantar com amigos.
19h – alkashdaskdhjsak! “Não acredito que dormi até agora!!!! Que idiota!!” Começa o mau humor de M.
19.01 – Insultos vários a si mesma.
20h – Liga-lhe um amigo: “Vamos jantar fora?”. Coitado, não sabe o que o espera.
20.30 – No restaurante. Silencio. M. revira os olhos e olha para o relógio. Responde mal, olha para o lado e amua. Neste momento odeia a humanidade.
20.31 – “Vamos para casa?”. “Mas acabamos de chegar”. M, furiosa: “Olha desculpa lá se tu tens um horário normal, caso não saibas eu tenho de acordar daqui a poucas horas, preciso dormir. Leva-me a casa ou apanho um taxi”.
22.00–M. já está em casa e o seu amigo odeia-a. M. põe-se na cama e… Cadê o sono?
23.30 – M. está furiosa porque não consegue dormir. A sua fúria não ajuda a que o sono chegue.
24.00– Começa a chegar o sono. O mau humor alcança picos históricos. Daqui a cinco horas o despertador tocará de novo.

Esta historia tem a variante de não dormir a siesta que, acreditem, é muito pior. O mau humor começa as 16, porque “tenho sono” e se prolonga até as 19h, quando muda para “tenho de estar na cama daqui a duas horas”. Como podem ver, ultimamente sou a melhor companhia do mundo.

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