A língua mãe

Ele disse-me assim, de voz desinteressada:
- É que por mais que estudes, nunca vais saber falar tão bem espanhol quanto eu.
Não era presunçoso, prometo. O contexto falou por si.
Conversávamos sobre as famosas “barreiras ao idioma”, sobre as dificuldades em fazer o que antes seria tão apetecível: escrever uma página dupla ou um grande artigo de opinião. Das vantagens do texto curto, simples, objectivo. E eu que sempre gostei de floreados.
Mas, de repente, o meu amigo perdeu-me. Fiquei-me por aquela frase. Tão dolorosamente verdadeira.
E lembrei-me da minha mãe. E das suas sabedorias de mãe. Disse-me ela uma vez que nunca ninguém sabe falar tão bem um idioma como a sua língua materna.
Eu agora que já sou grande, e ser grande tem destas vantagens, modifico em uns centímetros as suas medidas teóricas e pergunto-me: Quanto tempo é preciso para fazer de uma língua a minha língua materna? Tanto quanto fazer de uma estranha uma nova mãe?
Penso em mim, não na minha mãe, e na minha língua materna que tão pouco domino. Na minha língua emprestada que apesar de levar melhor, não o faço tão bem “quanto eles”. Falta-me o cabo e a trindade, diria.
E concluo que voltei a pensar um pensamento sem conclusão. Mais uma vez.
Enquanto isso, na minha cabeça correm calendários.

Pornografia Infantil, NÃO


Todos nós nos lembramos do Rui Pedro. Como esquecer? Aquela mesma foto vista vezes e vezes sem conta nos jornais. Aquele olhar desgastado da sua mãe sempre que dá uma nova entrevista à televisão. Sempre que a policia faz mais um e mais outro retrato robot. Sempre que os traços físicos se assemelham ao de um menino exposto num site de pornografia infantil internacional.
Instinto de mãe, diz. Tem a certeza de que é o seu filho.
E nós acreditamos.
Quantos foram aqueles que, tal como eu, quando acabou o Alice comentaram em jeito conformado: “Aposto daqui a uns meses ela aparece em mais um desses sites de pornografia infantil”?
Pois chegou a hora de riscar a palavra “conformado” do nosso léxico. Há cerca de um mês que dois blogs (e blogueiros) da Voz da Galiza lançaram a iniciativa Pornografia Infantil NÃO. E hoje é o dia D.
É o dia em que todos os blogs da Galiza e do mundo devem escrever um post onde denunciem esses criminosos e mencionem todo o tipo de palavra utilizadas nas buscas online de esse tipo de informação: angels, lolitas, boylover, preteens, girllover, childlover, pedoboy, boyboy, fetishboy ou feet boy.
É só a mim a quem apenas por ler “isto” lhe dá nojo?
O objectivo? Entupir os motores de busca com os nossos posts para que no dia de hoje, o dia D, este crime tenha uma barreira a mais. Mas, acima de tudo, para suscitar o debate, propor novas ideias, novas soluções para que no futuro se possa fazer algo em grande pelos Ruis Pedros de todo o mundo.
Participem também e hoje, no dia D, escrevam um post intitulado Pornografia Infantil, NÃO. Porque os blogs não têm de ser só “diários egocêntricos”.

Frífólí

- Vamos a um bar que está a tocar a uma banda muita fixe.
- Que tipo de música tocam?
- Ah tocam várias.
- Mas dá um exemplo.
- Olha, o “frifólí” vão tocar de certeza.
- Qual?
- O “fifóli”
- Ah, não conheço…
E de pensar que a conversa poderia ter acabado assim. E de pensar em todas as conversas que já acabaram assim. E em todas aquelas que não acabaram por terem sido interrompidas assim.
- Ah, não conheço – disse naquele dia. E em tantos outros dias repeti. Não conheço esse actor, nem esse grupo. Nunca ouvi falar desse filme.
- Claro que conheces – insistiu. Penso agora em todas as vezes em que não houve a insistência.
- Repete lá o nome?
- Frí-fó-lí
- Não conheço mesmo… Se calhar não fez sucesso em Portugal – digo para tentar enganar a minha ignorância.
- É aquela “I’m frí, frífóoooolí”
- Free falling?????
- Exactamente, vês como conheces?
Pois conheço. Tal como o “áirbarr”, o “Richár Gére” e o “Tim Búrtún”.
Isto porque a minha vida mudou desde que me ensinaram que por aqui falar inglês com sotaque inglês é coisa de gente presumida (convencida, diríamos nós).
Mas o estatuto de estrangeiro nestas coisas tem uma autoridade decisiva. E agora quando me dizem:
- O filme da Mégraía
Eu saco do estatuto e respondo:
- Diz lá isso com um sotaque presumido
- Meg Ryan – dizem numa gargalhada e um biquinho muito british
E eu rio-me de felicidade por já saber comunicar. E por já saber quem são os “Blikcientochentaydos”, que por sua vez são amigos dos "Ú Dos"
Muchas véri ténkiús, como se diria por aqui!

A fórmula

Fórmula mágica de sucesso (quiçá já um pouco gasta) para montar um curso de pós-grado direccionado a recém licenciados:

Regra de ouro: Fixar um número limite de vagas para que a direcção (e o dept. de RH) possa por em prática os seus critérios de selecção.

Critérios para formação do corpo de alunos:
80% de jovens suficientemente ingénuos para que possam ser moldados à lavagem cerebral da empresa e aos “encantos” da profissão (ainda que não o admitam)
10% de pessoas de idade mais avançada que aportem o factor maturidade ao grupo
10% de jovens revolucionários
50% de estudantes medianos (normais, diriam)
20% de estudantes abaixo da média para que no final se possa notar um “incrível progresso”
20% de jovens acima da média para “puxar o grupo para cima”
10% de jovens-revelação. O chamado “este sim é promissor”

Critérios de formação do corpo docente:
- O prof simpático e confidente que vá tomar cervejas com os alunos
- O prof preferido que diz o que queremos ouvir
- O prof messias
- O prof estrangeiro que faz subir a reputação do curso
- O prof polémico e as discussões que causa no refeitório
- O prof maluco, que tem como função “despertar as mentes adormecidas”
40% de profs competentes (ainda que esquecíveis em curto prazo)
Seminários ocasionais com profissionais da área
Aulas de lavagem cerebral

Recomendável: misture a fórmula com aulas práticas e entregas de trabalhos semanais (quem sabe diárias?)

Nota 1- Uma pessoa pode, no máximo, corresponder a duas características
Nota 2- Quem sabe Recursos Humanos seja um profissão interessante?
Nota de ouro: Tudo isto, se me permitem, com a devida margem de erro de quem passou a vida “de curso em curso”.

"Sucessos"

Existe por aqui uma secção do jornal chamada “sucessos”. Sempre que comentavam algo sobre a secção, eu pensava para mim que se tratava de uma interessante iniciativa de jornalismo positivo. Um dia cheguei até a folhear ao jornal à procura dos “sucessos”. Nada. Nesse dia não havia a dita rubrica, conclui.
Sucesso. Sucesso. Sucesso.
E diz a Marina durante uma apresentação de um trabalho frente a uma audiência de 60 pessoas:
“O que faz do nosso projecto um sucesso…”.
E pronunciei-o bem, pausadamente, com os “ésses” sessiados e os “cês” de língua no meio dos dentes. Com orgulho na minha palavra tão espanhola.
Olhando para trás, de facto, lembro-me de alguns sorrisos esboçados nesse preciso momento. “De inveja pelo meu maravilhoso castelhano”, acreditei.
Palmas.
Belo discurso!
E diz-me um amigo:
- Parabéns, correu muito bem a apresentação
- Obrigado – digo com falsa modéstia.
-Mas só uma coisa…
(ai vem)
- Não voltes a dizer que o nosso projecto vai ser um sucesso.
(ai os sorrisos, lembro-me daqueles dos sorrisos…)
- É que aqui sucesso é a secção do jornal que fala de crimes e violações. E não queremos que o nosso projecto acabe assim! Em Portugal não se diz “êxito”?
E essa é a história de como, com uma palavra, se foi pelo cano abaixo o “êxito” da minha apresentação, a aposta no jornalismo positivo e a vontade de dedicar a minha carreira jornalística aos “grandes sucessos”

Poligamia

Ser de um país é pior do que o casamento. É definitivo.
E por mais que negues, mudes, jures a pés juntos que nunca mais queres ver, pensar ou ouvir falar do dito país, ele persegue-te. Porque cada visita ao estrangeiro é como um flirt numa discoteca às 5 da manhã.
Não deveria achar esta praça mais bonita do que a minha, esta gente mais simpática, esta comida melhor do que a outra. Mas já que me estão a oferecer esta tortilha saída da frigideira… Vou só provar… Só para ver o gosto. “Delicioso”, pensamos de boca cheia. Mas não o dizemos. São cinco da manhã e a nossa cidade ainda dorme, nunca irá descobrir.
De flirt em flirt acabamos por mudar definitivamente de domicílio. Sinto-o como um casamento não reconhecido que nasceu de uma traição fortuita. Fazemo-lo meio as escondidas, em sapatinhos de lã. Vamos saindo aos poucos, para que ninguém note. Arranjamos uma lista de razões e desculpas para dar aos amigos. Saímos sempre sem dizer adeus. E, às vezes, sentimos que o deveríamos ter feito.
Morar em diversos países é poligamia e eu reconheço que tenho luxúria no meu coração. Quanta dor olhar para as fotos dos meus exs... Aqui, Lisboa, aqui, Torino e, aqui São Paulo, aqui…
E me perguntam, em conversas muito íntimas e secretas, qual o meu preferido e digo que não sei, não sei, todos!, juntos!, de uma só vez! - que vergonha!
Visitar Paris ou Viena é como ver um pote de leite condensado durante a dieta. Tão lindo e doloroso. Por que minha cidade não pode ser assim? Por que eu não posso eu ser assim? Por que é tão inatingível? Oh, como os quero bem! Paris, Viena, Amesterdão, Praga…
E, de repente, já não sei de que cidade é essa de que falo. Já não sei qual é este país de onde sou. Mas seja qual for, irá sempre perseguir-me fazendo com que em Espanha goste de pão de queijo, em Portugal de Tortilha, no Brasil de focaccia e em Itália de bacalhau com natas.
Pronto, assumo:
Sou poligâmica.

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