cartão

Perdi tudo.

Primeiro foi o banco. Fechar a conta? Só se vier pessoalmente. "Mas a filial mais próxima está a 500 kilomentros".  Ah, que pena, respondem. Não há outra opção.
Bancos. Detesto-os com todas as minhas forças.
E então lá viajei os tais 500 kilometros para recuperar o meu dinheiro. Reclamação, queixa formal e, finalmente, dinheiro recuperado.
Aproveitando a viagem fomos visitar uns amigos. "Ai, que saudades, quanto tempo!", comprámos os bilhetes, vamos para o autocarro, blablabla durante quase duas horas. E chegámos ao meio do monte. Uma vida entre hortas, conversas e passeios. E antes de tomar umas cañas vou buscar a carteira. Onde está? Desfaz a mochila, desfaz a bolsa, desfaz a cama. Nada.
Perdi a carteira. Aquela carteira que tinha todo o dinheiro pelo qual tinha viajado 500 kilometros. Essa mesmo.
E então o drama começa a rodear aquele fim de semana perfeito. Faço contas de quantos dias de trabalho (e de stress) precisei para ganhar aquelas notas perdidas. Penso nos documentos e na dificuldade de ser uma "cidadã do mundo". Começo as buscas na internet. ¿Segunda via da carta de condução? 20 euros. ¿Segunda via do cartão da segurança social? 20 euros.  ¿Segunda via da residencia? 20 euros. ¿Segunda via do cartão de identidade? 200 euros para ir a Portugal e 20 euros para renovar o documento.
Penso no meu cartão internacional de jornalista, no meu eterno cartão de estudante, no desconto do ginasio e no cartão da empresa. E chego à conclusão que perdi tudo.  Sou pobre e indocumentada.
Com a volta à cidade e à rotina tudo parecia ainda mais negro. Até que o telefone tocou.
"Encontramos a sua carteira". Como? O que? Belisca, belisca. Com todos os documentos?, pergunto. Com documentos e muito dinheiro, respondem.
Agredeci.
Já devolvi muitas vezes na minha vida carteiras com dinheiro, mas nunca pensei que isso aconteceria comigo. Desde então voltei a ter fé na humanidade.

breakingbad

Not quite my tempo

Nunca ninguém me tinha dito como as decisões são definitivas. Como naquela cena de Fargo em que Malvo pergunta: "Tens a certeza que é isto que queres? Sim ou não?". E nessa fracção de minuto estamos a escrever o nosso futuro. "Sim", responde Lester cheio de atitude e BUM! Todos mortos.
Tantas vezes quis ter mais tempo para pensar se estava a fazer o correto. Buscar um pouco de perspectiva. "Say my name", diria Heisenberg. Quis repetir uma e outra vez esse nome, essa decisão. Nao tive tempo. 
E assim, com pressa e a correr, entre o almoço e o cabeleireiro, fazemos escolhas que mudam o nosso rumbo. Aceitamos e rejeitamos trabalhos, beijamos aquele desconhecido, tomamos "só mais uma", dizemos um "temos que falar" e tudo muda, dramatizamos, começamos historias de amor. Perdemos amigos.

covarde

E se...?

Há anos que dizes "eu queria era abrir um negocio meu". Ser a minha propia chefe e blablabla. E então a ideia ganha força e perguntas "e se...?".
Mas és medrosa. Covarde. Sempre foste. Precisas de alguém que te motive, que cada dia te diga: "essa é uma grande ideia", senão a ideia morre e fica num "e se...".
O "e se..." é sempre bonito nas nossas cabeças. Serve para passar semanas a sonhar com o nosso negocio de sucesso. "Tenho a certeza que funcionaria", dizes. E já está. Depois vais para casa e no dia seguinte queixas-te por ter de ir trabalhar.
Mas não queres ser assim. Nunca quiseste ser como eles. ¿Lembras-te de quando querias mudar o mundo?
E se algum dia deixas de ser covarde? E se...?
casacheia

Casa cheia

Eu, na verdade, nunca tinha sonhado com isso. Com uma casa cheia. Nunca quis fazer filmes, documentários ou grandes projeções. O que eu queria era mudar o mundo.
Mas agora entendo que para mudar o mundo temos, primeiro, que conquistar. E para conquistar precisamos de leitores, espectadores, um clube de fans se for possível.
E foi por isso que quando chegámos ali, naquela sala de cinema vazia, no meio de uma tempestade, eu pensei: "no vamos a llenar". E, de repente, a casa cheia passou a ser importante. ¿De que serve fazer um trabalho se ninguém o vai ver? ¿De que serve vender DVDs se ninguém compra?
Tentei entrar em paz com a ideia: "Se não vem ninguém, não tenho porque estar nervosa". E os nervos passaram. Vamos ser os de sempre, eu direi o que penso e já está.
Começam a chegar as primeiras mensagens: "Estou na fila, quando abrem as portas?"
Fila? Fila? Há fila para ver o nosso documentario?
Havia. E era grande (tinha de ter tirado uma foto).
Abrimos as portas e as pessoas não paravam de entrar. Beijos para aqui, beijos para ali, "espero que os guste", "¿Vais apresentar o projecto?", "Sim, vai ser um discurso breve".
"Vim porque vi a noticia no jornal", disse uma.
"Vejo-te todos os dias na televisão", disse outro.
"Não podia deixar de vir", disseram varios.
E, de repente escuto: "¿Viste? A casa está cheia". Contámos os lugares vazios. Tres. Só havia tres lugares vazios.
E eu falei. Mexi muito as mãos como faço quando estou nervosa. Mas a minha voz não tremeu. Afinal trabalhar nisto serve para alguma coisa.
O documentario começou, mas eu não prestei muita atenção. Memorizava os comentarios, os risos, as exclamações. Anotava mentalmente os pontos altos e baixos. Fazia un "dafo" sobre la marcha.
No meio disto chegavam mensagens: "Ficámos lá fora. O cinema está lotado e já não pudemos entrar". E eu senti uma mistura de pena e satisfação. "Vais ter de comprar o DVD", respondi.
E quando chegaram os aplausos, relaxei.
Agradeci, agradeci muito. E tirei uma foto para nunca me esquecer da minha primeira estreia. Uma estreia com casa cheia.

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