"Desse" país

Eu como cidadã apatriada já fui vítima de vários tipos de discriminação.
Lembro-me de quando cheguei a Itália e à frente do meu prédio houve uma manifestação contra os “extracomunitários” e nós, os brasileiros, resolvemos nesse dia não sair de casa.
Lembro-me de quando no Brasil me disseram: “Para uma portuguesa até que não és tão burra”. E quando um português numa discoteca me explicou: “És brasileira, não podes recusar sexo”.
Fui aprendendo a levar as coisas com algum sentido de humor (e uns insultos revoltados metidos no meu do discurso do és-um-atrasado-mental-xenófobo-não-mereces-viver). A verdade é que até agora a Espanha (ou a Galiza?) tinha se apresentado como um país de gente acolhedora, que sabe ver na diferença uma vantagem exótica.
Eu pensava assim. Até hoje.
Como dadora de sangue há quatro anos (e recentemente inscrita no banco de dadores de medula) foi com um sorriso gigante que abri o mail da Voz da Galicia informando sobre a carrinha que iria estar hoje nas nossas instalações para quem quisesse participar nesse grande acto de solidariedade (!!!) - dar sangue.
A minha amiga brasileira entrou antes no consultório da médica e saiu de lá com cara de caso. Parece que como tinha acabado de chegar do Brasil não podia dar sangue. Franzi a testa e entrei para o gabinete da médica.
- Você também vem do Brasil? – pergunta-me devido ao meu sotaque de espanhol estrangeiro inconfundível.
- Não, venho de Portugal. Mas fui ao Brasil no Natal.
- Ah, então não pode dar sangue.
Eu ri-me. Já estava habituada a esse mal entendido. Agora era aquela parte em que eu explicava que o Brasil não é só a Amazónia e que eu tinha estado em São Paulo, ou seja, na zona urbana do país. Ela olhava o livrinho das regras e dava-me razão. Eu já tinha passado por esse filme várias vezes.
- Mas isso não importa – diz-me a médica – não deixamos a nenhuma pessoa que tenha vindo desses países dar sangue.
- Esses países?
- Sim, os países pouco desenvolvidos como o Brasil ou, por exemplo, a Africa subsaariana.
- Então mas se eu vou ao Brasil todos os anos, significa que nunca vou poder dar sangue em Espanha?
Pergunta-me então a senhora, com um ar de desprezo assustado:
- Mas o que vai fazer todos os anos ao Brasil?
Explico-lhe que sou brasileira.
- Ah, então não pode dar sangue durante três anos, pelo menos.
- Mas eu vivo na Europa há 17 anos.
Isso não pareceu importar. Consta que “essas pessoas” que nasceram “nesses países” podem ter doenças (que se curariam com três anos na Europa, a contar a partir do dia em que fomos tentar dar sangue pela primeira vez).
E hoje no jornal veio a notícia de que os hospitais galegos estão com falta de sangue.
Pelo menos o que têm é puro. Com o selo de qualidade dos europeus desenvolvidos e sem doenças.

"Ventinho"

Tudo começou de manhã quando cheguei à paragem do autocarro. Diz-me um amigo:
- Hoje a minha mãe não vai dar aulas. As escolas foram fechadas por causa dum ciclone.
- Bah. É por isso que o ensino está como está….
- Cambada de preguiçosos esses professores. Coitadinhas das crianças… não podem apanhar frio – disse o meu amigo em tom de desprezo, já invadido pelo mau humor matinal de quem não tinha sido dispensado das aulas e ainda lhe esperavam cinco horas de “montagem audiovisual”.
Saindo do autocarro, ouve-se um comentário enquanto a Marina era empurrada pelo vento.
- Joder.
O dia pasou com tranquilidade (e muitas montagens audiovisuais). Uma ou outra página de jornal alertando para o ciclone, contando sobre as escolas fechadas e os ventos a 160 km/h.
Mas até àquele momento, não passava de alarmismo dos media.
Como boa aluna, que não se deixa influenciar por estas coisas, cheguei à aula de espanhol. Qual aula? Escola fechada. Motivo? Ordem da “concellería” devido ao ciclone.
Mas que ciclone, caramba?
Eu que nunca tinha visto dessas coisas perguntava-me se um ciclone era só aquele “ventinho” que me empurrou para o lado durante a manhã. Mas a resposta veio rápida.
Quando chegámos a casa (depois da ida em vão à escola de idiomas) começa a sentir-se um vento. “Um ventinho”. Um pouco forte, eu diria.
É então que falta pela primeira vez a luz, justo quando estava a dar o meu programa preferido da televisão espanhola. Depois pela segunda vez, enquanto fazíamos o jantar. E, de repente, o vento e a chuva tornam-se na banda sonora da casa. Ponho a música alta, mas o barulho do vento supera-a.
Começo a ficar preocupada com o meu carro, coittadinho, estacionado na rua. Vou a janela espreitar. Um homem a passear o cão (suicida). Vem uma rajada de vento derruba-o (eu disse que era suicida). Por enquanto o meu carro continua no sitio.
Falta a luz outra vez. Ponho a musica ainda mais alto. Agora as janelas tremem.
Como dizia o meu amigo. “Não te assustes. Estes ventos são só para perceberes melhor a história dos três porquinhos”.
Por agora agradeço aos céus a minha “doble ventana” e rezo para que a minha casa seja das de tijolo e que esteja protegida contra ventos de 160 km/h. Neste momento, acabaram de chegar também os trovões e os postes de electricidade começaram a tremer. Tento espreitar outra vez o carro. Mas a névoa já não deixa ver tão longe.
“Coitadinhas das crianças, não podem apanhar frio”, dissemos hoje enquanto esperamos o autocarro naquela amena manhã.

Actualizações: Afinal ontem os ventos chegaram aos 182 km/h, morreu um homem ao levar com uma árvore em cima e a ventania continua. Agora acompanhada do sol.

Pobres? Nós?

Mandaram-nos fazer um trabalho sobre “quem são os galegos”. O assunto virou conversa à hora do almoço e lembrei-me de perguntar:
- E quem são os portugueses?
Na minha cabeça desfilava una lista enorme de clichés que iam desde a mulher com bigode, até ao famoso bacalhau. Mas não tive tempo de pensar mais, porque um amigo adiantou-se com a resposta.
- São pobres.
O adjectivo gelou-me por um instante. Pobres. P-o-b-r-e-s! Pobres?
Queria dizer-lhe que os espanhóis são mal-educados, têm o nariz empinado e não sabem falar nenhuma língua estrangeira. Queria dizer-lhe que somos pobres, mas não fazemos narcotráfico, nem idolatramos uma família real.
Mas no fim das contas, apenas assenti.
Porque não há como justificar a pobreza, e tentar desculpa-la, faz de nós mendigos.
- Também se vestem mal – acrescentou uma amiga.
Foi então que eu gargalhei que cheguei ao meu ponto de ebulição. Disse com o maior dos cinismos, qual menina de cinco anos:
- Pelo menos não somos convencidos e mal-educados
Ao que me responderam:
- Mas isso são os espanhóis, não nos confundas com eles.

A batalha estava perdida.

Os vatios e os hercios

Vivo num lugar “bumerán”, onde reina a incerteza de quando a vida mudará de novo. Num país-cidade onde há praia e as pessoas tomam sol de costas para o mar. Onde há chuva, neve e “esqui”. Dizem que isso faz deste destino “sexi”. Ou isso, ou as gaitas de foles.
Vivo num país onde o Brad Pitt fala em espanhol, e para conversar com ele em inglês, só recorrendo ao “deuvedé”. Até porque por aqui não existem os EUA. Dizem que se chamam EE.UU., mas eu contínuo a duvidar de que falamos do mesmo destino.
Neste meu novo país quiseram instaurar o “cederrón”, mas não pegou. Ficaram o “pecé” e o “cedé” a fazer companhia à “oenegé”, coitada, que por solidariedade não poderia ficar sozinha. O “emepetrés” continua em lista de espera, quem sabe um dia se junte ao grupo.
Por enquanto, os homens continuam a usar “esmoquí”. E isso lhes dá um certo “glamur”. Se bem que sempre preferi vê-los de “jersei”. Mas isso é outra conversa.
E com toda esta história lembrei-me dos meus queridos amigos. Porque se por coincidência da vida se tivessem conhecido por estas terras celtas, o seu ponto de encontro chamar-se-ia 24hercio. Digam lá que isso não dava todo um novo charme à coisa? E para que conste, por cá o hercio é amigo do vatio.
- Queria uma lâmpada de 75 vatios, por favor.
Melhor que isso, só um “estriptís”. Mas não entremos por aí.

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