O mundo em que vivemos, parte II

Estávamos sentadas num daqueles compartimentos de quatro pessoas do comboio. Elas, espanholas que não falavam inglês, eu, dez anos de british council e em busca de companhia para as 5 horas de viagem. Então surgiu a amizade e com ela a conversa sobre a vida madrileña e a vontade de comprar umas galochas, A eterna crítica à qualidade do café inglês e a constatação de como é bom viajar. E a cumplicidade foi aumentando, até que uma das raparigas comenta:
- Ah, e quando voltar de Cardiff vou a Paris Рdiz a loira dos brincos de p̩rola.
- A serio? Vais adorar! Sabes que eu sempre que estou em Paris tenho a sensação que em todas as pontes há um rapaz a pedir a namorada em casamento – confesso, sem entender muito bem porque lhe contei aquilo.
- É uma cidade muito romântica – sintetiza a morena com um blush demasiado vermelho para o seu tom de pele.
- Não me digas isso – preocupa-se a loira de madeixas recém feitas – O meu namorado sempre me disse que um dia me pediria em casamento em Paris... O problema é que outro dia ligou-me a dizer que já tinha comprado bilhete. Meu Deus, sou muito nova para casar.
Eu ri-me e a amiga franziu as sobrancelhas. A situação foi salva pelo quarto elemento feminino do nosso compartimento do comboio. A senhora idosa junta-se à conversa e tenta resolver a situação:
- Não te preocupes filha… Estando as coisas como estão aposto que lhe confiscariam o anel de diamantes no Raio X do aeroporto.
O casamento é uma arma potencialmente letal, conclui. Este é o mundo em que vivemos.

O mundo em que vivemos...

Eram umas 50 pessoas as que estavam fechadas naquele autocarro. Havia o problema da gripe A, do vizinho que cheirava mal, da senhora que falava alto e do motorista que, sabe-se lá, podia não saber conduzir. Mas no fundo, bem no fundo, o receio era outro. De repente, PUM. O estrondo foi tão alto que o autocarro saltou em coro. À minha direita um grupo de amigas gritava, as que estavam atrás recuperavam-se de susto e a senhora recém-divorciava aproveitava o momento para refugiar-se nos músculos do seu novo namorado. Os mais racionais olhavam à volta, “mas o que foi isto?”, ouvia-se repetidamente. Não demorou nem um minuto mais e, subitamente, ouve-se outra vez: PUM. As amigas abraçaram-se e o grupo da esquerda soltou um vasto rol de asneiras. O motorista, que, seguramente, faz desta rotina um prazer, gritou com voz de troça: “Tranquilos, estava só a fechar a janela”.
Metade do autocarro riu-se do patético da situação, a outra metade preferiu insultar o motorista de sentido de humor duvidoso.
Olhei para trás e uma menina limpava a sua lágrima de nervosismo.
Este é o mundo em que vivemos....

Visita de médico

Vistas bem as coisas, foi só um dia. Mas nesse dia houve tempo de visitar castelos, debater a situação actual do jornalismo, passear pelos parques de folhas vermelhas e fazer bolas de neve na feira de Natal. As horas esticaram-se e comemos bacon com feijões agridoce ao pequeno-almoço e bebemos uma Fosters ao jantar. Um brinde aos velhos tempos.
Deu para dormitar nas cadeiras do teatro vermelho e até para culpar o humor britânico da nossa nula compreensão das piadas com sotaque cerrado. Tive direito a festas Erasmus e a frango recheado com pesto. Comi cabelos que sabiam a batatas fritas e salivei com as fontes de chocolate no meio da praça. Vibrei com o rugby nacional e fui abençoada com o sol daquela manha de Outono. E, já agora, que todos fiquem a saber que só sobrevivi às nove horas de viagem graças às rezas de uma amiga indiana. Dhanyavadh.
Por aquelas terras também havia dragões vermelhos na rua e esquilos a passear nos parques. O museu fechava às cinco e a roda gigante custava quatro pounds. Too expensive. Ela falava de Gales e eu de Espanha. No fim acabei por lhe pegar a minha cadencia portuguesa e ela concluiu uma vez mais que não tinha personalidade linguística. Ainda podia falar-vos daquele amigo que queria pronunciar “eu comi seis pizzas” e acabou por dizer “eu comi seis pichas”, mas isso seria demasiado obsceno para este blog. Se houvesse mais espaço contar-vos-ia do italiano comunista que tem sotaque britânico, do galês que esconde o crânio por trás dos músculos e do americano que mais tem pinta de europeu. Mas não há mais tempo, porque o dia acaba e como ele esta pequena aventura, ou melhor dito, esta exótica visita de médico.

!Cambio!

No meu novo ginásio não há computadores nem máquinas cardiovasculares. A balança é analógica e só há duas funcionárias (as donas do local).
Cambio
As coitadas são tão baixinhas que não conseguem pôr a grade da porta totalmente para cima e, então, eu tenho sempre a impressão que os vizinhos da frente acham que ali dentro há um negócio ilegal de tráfego de mulheres vestidas com roupas justas.
Cambio
Como são pessoas pequenas, não lhes importa que o seu estabelecimento tenha a mesma área que a sala a minha casa e apenas 10 máquinas à disposição das suas sócias. Parece-lhes normal. Acolhedor, dizem as 30 mulheres que todos os meses pagam 40 euros por este serviço especializado.
Cambio
Sim, mulheres, porque outro dia apareceu o namorado de uma delas e as sócias gritaram em uníssono: “Chooo, aqui não entram homens”
Cambio
Só há um que tem permissão para passar da porta meio gradeada. E, na verdade, nem é bem um espécime masculino. É só uma voz forte e autoritária que nos acompanha todos os dias durante meia hora. E que de trinta em trinta segundos grita:
Cambio
E então la estamos nós, feito baratas tontas, a mudar de máquina em máquina de exercício em exercício. Aprendendo o verdadeiro valor de 30 segundos. E ele volta a mandar:
Cambio
Um pouco machista, eu diria. Mas o homem ordena e as mulheres obedecem. Como na sociedade em si, reflexionaria o taxista que apanhei outro dia. Sociologias à parte, a voz impõe e nós cambiamos, e vamos cambiando, como se a vida fosse isso. Como se um cambio fosse assim tão fácil.
Cambio
E então enganamo-nos num exercício. Não conseguimos atinar com a coordenação do movimento e a funcionaria baixinha ri-se e diz que não faz mal, que o importante é que nunca pares.
Cambio
E eu mexo-me descordenadamente e penso que esta sala é algo mais que um ginásio. É um filosofia de vida: Se te mexeres sempre, não tardará em chegar o próximo
Cambio

Deuses do aniversário, parte II

Eu não queria fazer anos e tornei-o público. Esse foi o erro.
Na véspera pus os telemóveis em silêncio e escondi-me debaixo do edredom. Desta vez não havia telefonemas de meia-noite. O despertador tocou à hora de sempre e anunciou um dia que seria tudo menos comum. Uma amiga perdida na porta e um pequeno-almoço de presentes e língua familiar. Toca a trabalhar, que temos de viver de alguma coisa. A amiga ficou em casa e eu e os chocolates fomos para o platô. Abraços, beijinhos e doces na barriga dos amigos. Então comecei a receber os parabéns pelos “vinte e dois anos repetidos”, os beijinhos virtuais “por nenhuma razão em especial” e as mensagens com sotaques esquisitos:
- Mas Marina, quantas línguas falas? – perguntaram os meus companheiros.
E eu ria-me e continuava a gerir o tráfico internacional do meu telemóvel recém-carregado.
“Ah, então é por isso que eu gosto de fazer anos”, conclui.
Tinha-me esquecido que a graça disto tudo não é passar dos “patinhos na lagoa” para a “idade do casamento”, que não é ter uma super festa organizada com meses de antecedência, nem presentes à nossa espera em cima da cama. Fazer anos é neste dia, durante um dia, receber notícias de amigos perdidos em combate, ouvir desejos de um ano feliz, de uma noite espectacular. Escutar, muitas e repetidas vezes, que gostam de nós. E nós passamos o dia a lembra-nos do quando gostamos deles. É arranhar idiomas já esquecidos. É dizer “obrigado” mais vezes do que é humanamente possível.
Mas, como todos vocês sabem, eu tinha me metido com os deuses do aniversário e eles não costumam levar essas coisas a bem. Eles tinham me livrado do inferno astral e eu deveria ter desconfiado disso. Chegou o grande dia e todos aqueles desejos amigáveis não adiantaram para nada, porque esse dia, o meu dia, foi um dia mau. Não, mais que mau, foi muito mau, demasiado mau para ser verdade. Mas cada vez que me gritavam, me davam para trás e me faziam cara feia, eu ria-me. Gargalhava e pensava: “hoje é o meu aniversário e os deuses estão a brincar comigo”.
Cheguei então a casa com um punhado de míticas aventuras de um dia de anos falhado que as fizeram rir. Saímos e comemos tudo com batatas num restaurante da moda. Acabamos a noite numa manhã de música espanhola entoada em tom desafinado num palco qualquer. Cantámos. Gritámos e dançámos até doer-nos os pés e a barriga de tanto rir.
Ao chegar a casa, já na manhã do dia seguinte, sussurram-me antes de dormir: “Parabéns, já tens 23”.
Eu pronunciei um último “obrigado” e pensei para mim mesma: “Prometo não voltar a meter-me com os deuses do aniversário”.

A morte temporária

Tinha um mês para fazer aquelas 15 entrevistas. Havia dedicado uma manhã a distribuí-las metodicamente pelas 4 semanas que restavam até à estreia. Trabalho fácil, tranquilo, conciliável. Até que resolvi apresentar o plano aos chefes. Tinha uma média de 3,75 entrevistas por semana. Parecia-me razoável.
- A ideia é perfeita, Marina, só que o nosso câmara vai-se embora depois de amanhã – diz um deles.
- Acho que vamos ter de cancelar as entrevistas… - acrescenta o outro.
Eu ri-me. Vê-se tão bem que só me conhecem há um mês. Não pensei nem um segundo.
Agenda numa mão, caderno de anotações na outra, planos de rodagem no colo e telefone entre a orelha e o ombro. Sim, estava tudo certo, faríamos 15 entrevistas em dois dias.
As perguntas e os planos preparam-se na noite em claro do dia anterior. A montagem fazia-se entre um descanso e outro, e os actores… esses convencemo-los com um sorrisinho e uma promessa de sucesso.
Já estávamos no dia dois e o entrevistado falava há meia hora. Doía-me o braço de segurar o microfone e a cabeça de tanto pensar. Não podia mexer-me porque senão os meus pés entravam no plano. Não podia falar, nem tossir. Não podia suspirar.
De repente, um enjoo. Lembrei-me que não comia há muitas horas. Enjoo de fome, conclui. Depois uma fraqueza nas pernas. Fiz as contas. Estava há 8 horas sem me sentar. Foi então que os dois juntaram-se e a visão começou a surgir aos quadradinhos. Era ele. O aviso.
Quando abri os olhos dois homens sacudiam-me as pernas e mandavam-me água para a cara. Tinha acontecido outra vez.
Un bajón de tensión – expliquei. Não adiantou. Trouxeram-me açúcar, comida e primeiros socorros.
- O que aconteceu? - perguntaram-me.
- Nada, nada... É que... (como se diria isso neste idioma maldito?) morri temporariamente- arrisquei com a minha malícia poliglota.
O meu entrevistado riu-se.
- Ela desmaiou de repente - aclarou.
- Sim, "he desmayado" (porque é que nunca confio no glorioso portunhol?). É que só agora que eu percebi que é a primeira vez que desmaio em espanhol. - Tentei justificar-me.
- Isso é bom sinal Marina, porque mundo não é das virgens - explicou-me aquele sábio actor.
Eu concordei. Afinal de contas, tinha aprendido uma palavra nova.

Um Samaín à portuguesa

Conheci o Murphy há um ano atrás num baile de Samaín. Apaixonamo-nos e fugimos decididos a passar uma vida a dois longe das discotecas de after-party corunhesas. Já a amizade com o zombi-zorro-coveiro é um pouco mais antiga. Começou com gargalhadas em muros de cimento e discussões sobre mariscos esmagados. Já havia sangue desde o principio.
Mas naquele dia o destino resolveu juntar a estas três almas perdidas para uma noite à caça de bruxas. Ou melhor dito, à caça a fantasmas enterrados do passado.
Começámos com maquilhagens e conversas profundas. Juntamos à festa uma litrosa ou duas e uns quantos amigos descaracterizados. Rimo-nos com dor de barriga e, aos poucos, fomos perdendo a compostura. No final da noite fizemos o balanço. Constava uma cabeça degolada, um chapéu pontiagudo perdido no vento (ou num subtil movimento de cabeça) e garras espalhadas pelo chão encharcado do Bairro das histórias.
E dessas andanças ficou uma amizade. Uma amizade que ressuscitou alguns fantasmas de erros passados e trouxe de volta a certeza de que não se devem enterrar vivos os sentimentos. Eles voltam à vida na ressaca do Samaín.

Subscribe